terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

A propósito do problema da mobilidade dos médicos em Portugal

Com a devida vénia, a transcrição de um artigo do Dr. Armando Brito de Sá, publicado no jornal "MGF Notícias" do dia 1 de Fevereiro, sobre o sempiterno problema da mobilidade dos médicos:


«Tenho matutado sobre a peculiar política de recursos humanos seguida pelos que nos lideram. Resolvi neste processo espreitar outros países. Tomemos, por exemplo, o Canadá - sítio a atirar para o frescote e com alguns problemas de cobertura médica nas regiões rurais (e no Canadá "rural" costuma ser para cima de 500 km do centro urbano mais próximo). Um jovem clínico que aceda ir por um período fixo (dois, três anos) para um daqueles sítios onde quase só há caribus e ursos polares sabe que não só tem um rendimento acrescido como, ao terminar esse período, terá acesso a excelentes postos de trabalho em territórios mais povoados. O sistema funciona. As populações estão cobertas, os médicos jovens trabalham duramente mas depois têm acesso a posições que os recompensam do esforço feito. No Reino Unido, as practices contratam quem querem e o médico escolhe o lugar de que gosta, desde que haja população para trabalhar. Nos países civilizados a mobilidade é simples, eficiente, personalizada e bem oleada. Os bons profissionais são disputados. Há vários modelos de trabalho possíveis, adaptados ao estilo de vida de cada um.

E o que temos por cá? Bem, é um bocadinho diferente. Vivemos numa pirâmide que é um híbrido de burocracia napoleónica com planificação central estalinista. Fazem-se mapas e folhas de Excel, calculam-se rácios, médias e afins, cruza-se com os espaços existentes e bingo! Temos os recursos humanos definidos. Agora é só abrir concursos no Diário da República e esperar que hordas de profissionais acorram para preencher as vagas, sardinhas obedientes nadando felizes para o seu lugar na lata.

Mas nem tudo está bem. Quando analisamos este cenário aparentemente perfeito e inatacável verificamos que há locais desertos em permanência e que há populações sempre a descoberto. E a razão para isto é simples: se um desgraçado se distrai e, por lapso ou vocação sacerdotal, dá consigo num desses lugares atrás do sol posto, é certo e sabido que só sai de lá de uma de três formas: (i) por troca com outro incauto ou com um filho da terra (e estes raramente querem regressar a não ser para matar saudades), (ii) por morte ou reforma antecipada e (iii) por rescisão do contrato de trabalho com o SNS. Transferência? Impossível ou, dir-lhe-á alguém com um sorriso profissional, só por troca com um colega de outro lugar que isto de recursos humanos está difícil e tal. Impedir a saída de um profissional frustrado com o seu lugar de trabalho para outro em que ele se sinta motivado e satisfeito passa, entre nós, por boa e prudente gestão. Escolher um lugar num sítio menos concorrido, assim, não é uma passagem num trajecto profissional: é uma condenação perpétua às galés.

Qual é o resultado? Muitos médicos, uma vez confrontados com a colocação num lugar que não lhes interessa e de que sabem nunca mais terem possibilidade de fugir, escolhem a hipótese (iii): evocam mentalmente a figura canónica do Zé Povinho e vão-se embora. E os que se vão embora são, muitas vezes, daqueles que mais interessaria ao Estado conservar: gente nova muitíssimo bem preparada, com iniciativa e ideias, capaz de ser motor de mudança onde quer que esteja. Conheço uns poucos: estão no estrangeiro, estão a fazer doutoramentos, estão na indústria farmacêutica, estão a fazer medicina em instituições privadas; e todos, mas todos, sem excepção, afirmam que estão muito melhor agora mas que, se não fosse a forma como foram tratados, nunca teriam abandonado o SNS. E ninguém chama à responsabilidade quem os levou a ir embora. A verdade é que, trinta e tal anos e não sei quantas reconfigurações da estrutura do Ministério da Saúde depois, ninguém teve a coragem de mudar um modelo de gestão de recursos humanos que prega a equidade, a imparcialidade e a racionalidade mas só não é motivo de riso porque as suas consequências são trágicas: o incentivo à saída de muitos dos melhores, a desmotivação de tantos outros, a raiva mal contida dos que, apesar deste tratamento ao nível de gado, continuam no SNS a praticar a melhor medicina que podem e que sabem.»

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