domingo, 14 de janeiro de 2018

Uma criança fora do seu tempo, este filho

Com a devida vénia, uma crónica de opinião, da autoria de Inês Teotónio Pereira, intitulada "Criança muito pouco moderna", publicada ontem no jornal "Diário de Notícias". Dá que pensar...

«Na escola do meu filho mais novo há dezenas de galochas de vários tamanhos para as crianças calçarem quando chove e passarem o dia a saltar nas poças. Chafurdar mesmo. As crianças da escola do meu filho devem ser as únicas no país que ficam felizes quando chove, as poucas que sabem o irritante que é ter pingos a escorregarem pelas costas abaixo quando abanam o ramo de uma árvore. A minha chega a casa desmaiada de cansaço quase todos os dias. É um regalo. E o mais estranho é que ainda não ficou doente este ano, nem tosse, nem gripe. Pensei em perguntar à pediatra se não era melhor ver o que se passa, tanta falta de ranho pode não ser normal. São as poças, desconfio, tivessem todas as escolas poças chafurdáveis e as urgências estavam às moscas. E o cão? Lá na escola também há um cão que os acompanha nos passeios e que se rebola com eles no meio do chão. Não é um cão, é uma cadela: a Pinha do Pinhão - que é como se chama a escola. Ela lambe a cara da criança, a criança deita-se no chão com ela e puxa-lhe as orelhas, abre-lhe a boca e espreme-a. Ele gosta tanto da Pinha que quer ser cão quando crescer. Antes cão que coelho ou galinha, que também os há no Pinhão. Também alimento mal este meu filho. É o mais novo e o mais novo tem direito a gomas quando vamos ao supermercado, a bolo quando vamos ao café e a um sumo quando não quer uma coisa ou outra. Uma vergonha. Desconfio que a criança já enjoou o açúcar e às vezes pede um croquete ou um folhado de salsicha. Mas isso não lhe dou: bolos, porque as crianças comem bolos assim como as avós bebem chá. Ser conservadora tem as suas consequências: prevarica-se com açúcar, não com fritos. Ele está magro. Quer dizer, não está gordo. Come sempre sopa, bebe água às refeições e está sempre a roubar fruta. Ninguém é perfeito. E as horas de sono? Não sei bem. Há noites em que me esqueço de o deitar: o sonso vai para um cantinho brincar em silêncio, a fazer de conta que não existe para não ir para a cama. Às vezes resulta e ele dorme menos do que devia, outras vezes não resulta e vai para a cama a espernear. A minha mãe também diz que ele devia fazer mais jogos didáticos para desenvolver competências e crescer, vá. Pois, concordo. Mas nem eu nem ele temos paciência para jogos didáticos ao fim de um dia de chuva onde se chafurdou na lama. E, mesmo sem lama ou chuva, o que nós gostamos mesmo de fazer ao fim do dia é deitarmo-nos no sofá a ver o Panda. (Experimentem). Uma criança fora do seu temo, este meu filho. Espero que o sal, o açúcar e a chuva assim o conservem.»

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