sábado, 13 de janeiro de 2018

Como se eu fosse médica

O artigo, com o mesmo título, da autoria da jornalista Sara Sá, foi publicado na revista "Visão" no dia 7 de Janeiro de 2016. Continua válido...

«Esta crónica é altamente tendenciosa e tem uma agenda. Escrevo-a a pensar na Ana, no Filipe, na outra Ana, na Tânia, no Alexandre... Todos médicos.

Por razões profissionais e pessoais, lido muito com eles. Tenho fontes que são médicos, e amigos também. Aqui, tomo-lhes as dores.

Vejo o Filipe, que já tem idade para se escapar aos bancos, a marcar ponto, dia sim, dia não. A Ana, que trabalha num hospital gigantesco, que recebe as maiores desgraças humanas, já apanhou pulgas e piolhos em serviço, mas o que a assusta mesmo é estar sozinha, na urgência, e ser obrigada a tomar decisões de vida ou morte sem ter ninguém com quem as discutir. Que a medicina não é uma ciência exata.

Penso na Francisca, ainda interna, cheia de vontade de fazer o bem, ajudar o próximo - aqueles clichês que podiam parecer pirosos, não fosse o olhar transparente de quem cresceu numa cidade pequena e ainda não passou a barreira dos 30 - cheia de medo por ser obrigada a assumir a responsabilidade de um "chefe".


Recordo a reportagem que fiz num grande hospital, em que um médico me mostrou as dezenas de programas informáticos que é obrigado a usar durante uma consulta - para prescrever análises, mandar fazer uma TAC, agendar a próxima ida ao hospital... - cada tarefa numa aplicação diferente. E contei o tempo que demora a arrancar o computador, do século passado (e não é figura de estilo!): cinco minutos, de relógio.

Também ouvi as queixas de quem tem os estipulados quinze minutos para atender um doente. Seja para receitar um antibiótico para tratar uma amigdalite ou para comunicar uma sentença para a vida. Seja para atender um jovem em idade ativa ou para receber um idoso, com dificuldades na marcha. E a sensação de trabalho incompleto e imperfeito que isso deixa num profissional.

Sei que muitos fazem horas extraordinárias, sem receber mais por isso e que ainda assim são obrigados a justificar porque é que "picaram o dedo" depois de terminado o seu horário de trabalho.

Penso na minha amiga Tânia, com especialidade feita, doutoramento a caminho, emigrada na Bélgica. Morre de saudades da sua cidade, mas a oferta que lhe fizeram no hospital universitário de Bruxelas era imbatível: um horário certo, banco ao fim de semana uma vez por mês, um dia por semana para se dedicar à investigação - o básico em muitos países da Europa, mas que em Portugal é uma realidade impossível.

E recordo a mágoa do Alexandre. Que se sentiu atingido pelas acusações feitas aos médicos, no conhecido caso David (o jovem de 29 anos que morreu na sequência de um aneurisma, enquanto aguardava por uma cirurgia). "Que só querem é dinheiro, que deixaram um jovem morrer..." Ideias expressas em títulos de jornais e que provocaram um forte sentimento de injustiça. Sentem que ninguém lhes reconhece o espírito de sacrifício, a carolice. Os dias de Natal passados a trabalhar. As festas da escola dos filhos a que são obrigados a faltar.

Tudo isto levou a que muitos tenham saltado do sistema público. Uns para fora do país, outros para os privados. O novo ministro da Saúde já avisou que se vão contratar novos médicos, para "repor as condições de segurança clínica". Só que os que foram já não voltam. E o olho clínico não se ganha por decreto.»

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