.../...«Se a violência doméstica deixou de ser tabu na sociedade, quando as
vítimas são os homens os casos raramente vêm a público. Em 20% das
situações de violência conjugal, as agressoras são elas, embora
raramente sejam julgadas e quase nunca condenadas.
.../...E os que denunciam nem sempre são levados a sério: “Acabam por ser
olhados com desconfiança, porque alguns agressores tentam fazer-se
passar por vítimas.”
.../... a violência exercida pelas mulheres é diferente da cometida pelos
homens: “Enquanto que a violência doméstica ‘tradicional’ assenta muito
nas agressões físicas, que são mais fáceis de provar, a violência das
mulheres é psicológica, subtil e continuada.”
.../... De vítima a condenado.
Fernando viveu quase quatro anos debaixo do mesmo tecto que a mulher que
o agredia. Conheceu-a na internet quando vivia em França, acabado de
sair de um divórcio. Ela estava em Portugal e também tinha acabado uma
relação há pouco tempo. “Na altura, estava destroçada, com uma depressão
enorme e a fazer medicação psiquiátrica”, recorda Fernando. Só se
conheceram pessoalmente meses depois, quando ele veio de férias à terra.
Gostou dela e como a viu tão em baixo, convidou-a para passar duas
semanas em Paris. Pagou-lhe as viagens de avião e preparou-lhe um quarto
em casa. Acabaram a dormir juntos na primeira noite e, passadas as duas
semanas, ela anunciou que ia tirar uma licença sem vencimento: queria
ficar mais uns tempos em França. Um mês depois, estava grávida. Ela
queria abortar, dizia que a diferença de idades entre os dois era
“incomportável” – ele tinha 60 anos e ela 31 – e que, além disso, seria
“má mãe”. Pierre acabou por nascer e ela só falava em voltar para
Portugal. “Dizia que tinha um emprego bom, que não fazia sentido
continuar em França e que o melhor seria eu ficar com o menino em
Paris”, conta Fernando que, na altura, estava a três anos da reforma e
não queria ser penalizado por deixar o trabalho antes do tempo. Mesmo
assim, despediu-se. Comprou uma casa em Portugal e mudaram-se para
Évora.“Depois de o menino nascer ela tornou-se muito agressiva, mas eu
achava que era por se sentir infeliz em França, longe da família.” Mas a
mudança só veio piorar a relação. “No início eram as agressões verbais.
Quando eu chegava a casa, ela dizia coisas do género: “aí vem o velho”
ou “não há maneira deste velho me sair do caminho”, recorda Fernando.
Todos os dias havia gritos. “Exaltava-se muito, gritava, chamava-me
nomes do nada, dentro e fora de casa”. Mas os “ataques de fúria” duravam
pouco. “Passado meia hora ela voltava ao normal e eu tentava levar
aquilo com calma por causa do menino.”Até que um dia ela falou em
divórcio. Disse que não queria viver mais com ele e rematou a conversa:
“Tu estás velho. És um velho que não serve para nada.” Na altura,
Fernando já falava em pôr a casa em nome de Pierre – para o colocar em
pé de igualdade com os filhos do primeiro casamento, a quem tinha
oferecido um apartamento. Meses depois, a escritura foi alterada, mas
para o nome dela e, a partir desse dia, o verdadeiro inferno começou.
“Nunca mais me voltou a deixar dormir, as agressões eram constantes e
cheguei a ir parar ao hospital com a tensão a 18/22, à beira de um AVC”.
Numa noite, entrou-lhe pelo quarto a dentro com um frasco de álcool
etílico e um isqueiro na mão, determinada a deitar-lhe fogo.
Escondia-lhe objectos de propósito para o irritar e um serão, à frente
do filho, agarrou numa faca de cozinha para o atacar. Foi aí que
Fernando pediu ajuda à PSP pela primeira vez. O agente que o atendeu
esboçou um sorriso quando ouviu a história. “O senhor está a duvidar de
mim?”, perguntou Fernando. A queixa acabou por ficar registada na
polícia e, uns tempos depois, decidiu procurar ajuda junto de uma
conhecida associação de apoio a vítimas. “Havia um desinteresse muito
grande em relação ao meu caso e, mais tarde, vim a saber que nem sequer
registaram o pedido de apoio por escrito”. A sensibilidade dos advogados
não era maior.Fernando teve quatro. “Eram oficiosos e não se
interessavam. Um chegou a dizer-me que não tinha tempo para falar comigo
porque recebia pouco do Estado”. Em todas as instituições, a
desconfiança era evidente: “Toda a gente olhava para mim,
permanentemente, como se a culpa fosse minha e fosse tudo inventado”. Em
casa, as agressões continuavam. “Eu nunca reagia, tentava não perder a
cabeça por causa do menino e porque desconfiava que se lhe batesse seria
muito pior”. Até que um dia perdeu a paciência e quando ela lhe tentou
dar murros no peito, ele agarrou-a pelos braços, encostou-a a uma parede
e disse-lhe: “Tu nunca mais me vais voltar a conseguir bater”. Nem duas
horas depois, ela já estava no hospital, com os braços marcados e a
contar como era vítima de violência doméstica. Ele já tinha apresentado
queixa antes, mas o processo foi arquivado por falta de testemunhas. Já a
dela avançou rapidamente. Acusou-o de agressões, de tentativas de
homicídio, de roubo, de a empurrar de escadas. Uma noite, quando o caso
já estava em tribunal e depois de ela se ter mudado para casa da mãe,
Fernando acordou com um estrondo na rua. Quando foi à janela ainda viu o
carro dela a arrancar a grande velocidade: tinha acabado de lhe partir o
pára-brisas do carro.Fernando foi julgado por violência doméstica e a
mulher encaminhada para uma casa-abrigo com Pierre. “Durante oito meses
não soube do paradeiro do meu filho e ninguém me deixava vê-lo.” O
divórcio saiu em 2010 e Fernando acabou condenado a três anos de cadeia
com pena suspensa. Pierre tem agora 11 anos e vive com a mãe. Está com o
pai aos fins-de-semana e nas férias escolares e, aos poucos,vai
recuperando a confiança em Fernando: “Quando era mais pequeno achava que
eu queria matar a mãe. Foi um processo muito difícil e espero que um
dia, quando ele for adulto, consiga compreender o que se passou”.».../...
(Excertos do artigo de Rosa Ramos, intitulado "A história de dois homens que foram vítimas de violência doméstica por parte das suas mulheres", publicado no "Jornali" de 2015.03.15)
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