segunda-feira, 16 de março de 2015

O tempo em que éramos livres e não sabíamos

«Tenho saudades do tempo em que chamar filho da puta a um filho da puta era mesmo só dizer o que pensávamos daquele filho da puta e ofendê-lo na medida do verbalmente possível sem cairmos numa polémica sobre os nossos preconceitos acerca do comportamento sexual que esperamos das nossas mães e das mães dos outros e das outras (manda agora o bom senso dizer tudo em dobro ou quiçá em dobra e dobro). Desse tempo em que o simples pronunciar da palavra mãe não nos levava a ser interpelados sobre as “representações eivadas de uma concepção patriarcal” que subsistem nos recônditos do nosso pensamento, recônditos esses em que existem papéis de pai e papéis de mãe diferenciados, que é o mesmo que dizer estereotipados.

Hoje, independentemente do filho da puta continuar a comportar-se como um filho da puta, há que ponderar que as putas são trabalhadoras sexuais, que ao referirmos a mãe de alguém, seja ela trabalhadora sexual ou não, temos de considerar se estamos a falar da mãe biológica ou não biológica ou da mãe companheira da outra mãe e que, para evitar mais quezílias, o melhor será desistir de falar de filhos ou de filhas pois automaticamente incluímos o ser objecto da nossa ira num género (uma sociedade que trocou o sexo pelo género não está de facto boa da moleirinha!) ao qual não sabemos se ele quer pertencer. No fim o nosso filho da puta passará a “pessoa com relação de parentalidade com trabalhadora sexual” mas nós ficamos com a alma livre de escarmento. Para quem tiver dúvidas na matéria aconselho a consulta do Guia para uma Linguagem Promotora da Igualdade entre Mulheres e Homens na Administração Pública, dado à estampa em 2009, e que entre muitas assombrosas coisas manda que se diga “a gerência” em vez de “o gerente” ou “a direcção” em vez de “o director”. (No caso, os directores e os gerentes na hora de lhes chamarmos “grandes pessoas com relação de parentalidade com trabalhadoras sexuais” agradecem porque se o director ou a directora têm nome, a direcção é composta ao certo não se sabe por quem e muito menos se percebe quem nela decide o quê.)

Se alguém tem ilusões sobre a possibilidade de escapar entre os pingos da chuva a toda esta doideira é melhor que as perca: no V Plano Nacional para a Igualdade, Género, Cidadania e Não Discriminação (em vigor até 2017) o Governo comprometeu-se a encomendar um estudo para avaliar até que ponto a “linguagem inclusiva” está ser utilizada na administração pública. (Realmente é melhor que se entretenham na administração pública porque se chegarem à industria dos moldes ainda acabam a proibir as peças macho e fêmea). Naturalmente o estudo dirá que muita coisa ainda está eivada da terminologia anterior à linguagem inclusiva. E um novo guia de linguagem inclusiva e novos estudos sobre a aplicação da linguagem inclusiva se seguirão. Até ao dia, claro, em que os promotores da linguagem inclusiva descobrirem que esta não faz qualquer sentido e passem a defender o seu contrário com idêntico fervor, idênticas avenças e correlativa proliferação de gabinetes de estudos destas rentáveis temáticas. graças às quais em muitas universidades se tem substituído o saber pelo proselitismo.

Na verdade nestas matéria já nada me espanta desde que, meados do ano passado, descobri que os programas e secções de jardinagem muito populares em países como a Inglaterra e a França andavam a ser criticados pela sua terminologia racista e discriminatória – é o problema da mosca negra, das espécies invasoras, as pragas de plantas exóticas… A obsessão com o racismo tem levado a paradoxos tais que no futuro terão de fazer glossários para que se perceba o vocabulário que criámos nesta matéria: assim, depois da igualdade entre as raças passou-se para as etnias, mais as comunidades e agora andamos nos afro isto e aquilo versus os europeus. Resultado: um negro que viva em Portugal há várias gerações ou que nunca tenha posto os pés em África é designado como africano, ao passo que um branco, mesmo que tenha nascido em África e descenda de uma família radicada naquele continente há mais de um século nunca deixa de ser europeu. (Essa foi aliás a lógica que não só levou a que se chamassem retornados aos portugueses que fugiram de África de 1974 a 1976 mas também a que, contra todas as evidências, políticos e jornalistas tenham apresentado essa fuga como um comportamento exclusivo dos brancos).

Boa parte deste nosso linguarejar não faz qualquer sentido. Por exemplo, manda a novilíngua em alguns países ditos mais evoluídos nas questões da multiculturalidade que não se diga Estado Islâmico mas sim Daesh para não ofender os muçulmanos, alteração que faz tanto sentido quanto designar os cruzados por octognos ou paralelipípedos rectângulos na hora de criticar as cruzadas, alegando que usar o termo cruzados pode ofender os cristãos que têm na cruz o seu símbolo sagrado.

Podia fazer quase uma edição completa do Observador com exemplos dos absurdos a que o politicamente correcto nos conduziu. Na linguagem e não só. Todos os dias há uma polémica. Vivemos em frenesi. Anteontem o problema era a publicação por uma editora da revista Vogue de uma foto onde se via uma mulher com ar de pedinte (agora deve dizer-se sem-abrigo mas preparem-se porque daqui a uns meses esta designação agora tão certinha pode tornar-se maldita!) a ler aquela revista de moda acompanhada da legenda: “Paris está cheio de surpresas… há leitores da Vogue até nos sítios mais insuspeitos”. Também tivemos o problema das gaffes de Jeremy Clarkson, um muito apreciado apresentador da BBC a quem um murro dado num produtor acabou com uma longa carreira a dizer banalidades que se tornaram blasfémias. O problema como é óbvio não foi o murro mas sim ele obstinar-se em fazer considerandos politicamente incorrectos sobre sexo, culturas, países… De caminho, o Daily Telegraph até fez um levantamento dos 14 filmes mais politicamente incorrectos e, na prática, do James Bond ao Dumbo, tudo é um repositório de racismo e outros ismos.

Não nos bastando a constante supervisão do presente, o próprio passado é revisto. E assim, de Camões a D. Pedro I sem esquecer Inês de Castro ou a padeira de Aljubarrota os protagonistas passam a ser apresentados como bons ou maus (o maniqueísmo está vivo e recomenda-se) em função dos conceitos que o progressismo manda adoptar no presente. Logo D. Afonso Henriques passa a machista e Dona Teresa a feminista. Os próprios clássicos podem ter de ser reescritos. Das Aventuras de Huckleberry Finn aos filmes sobre a vida de Jesus, em que se analisa o papel dos negros e das mulheres nada escapa a esta perspectiva correctora do passado, do presente e do futuro.

Como exclamam alguns venezuelanos emigrados em Espanha quando recordam o seu país antes da revolução bolivariana “Esse era o tempo em que nós éramos felizes e não sabíamos”. Também a mim me apetece dizer que tenho saudades do tempo em que acreditámos – pelo menos eu acreditei – que combater aquilo com que não concordávamos era apenas isso: combater aquilo com que não concordávamos e não criarmos as metástases do Comité de Saúde Pública, de Rousseau. Esse era o tempo em que éramos livres e não sabíamos. E eu tenho saudades dele.»

(Artigo de opinião de Helena Matos, intitulado "Saudades do tempo em que éramos livres e não sabíamos", publicado no jornal online "Observador" no dia 2015.03.15)

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