«Tenho saudades do tempo em que chamar filho da puta a um filho da puta
era mesmo só dizer o que pensávamos daquele filho da puta e ofendê-lo
na medida do verbalmente possível sem cairmos numa polémica sobre os
nossos preconceitos acerca do comportamento sexual que esperamos das
nossas mães e das mães dos outros e das outras (manda agora o bom senso
dizer tudo em dobro ou quiçá em dobra e dobro). Desse tempo em que o
simples pronunciar da palavra mãe não nos levava a ser interpelados
sobre as “representações eivadas de uma concepção patriarcal” que
subsistem nos recônditos do nosso pensamento, recônditos esses em que
existem papéis de pai e papéis de mãe diferenciados, que é o mesmo que
dizer estereotipados.
Hoje, independentemente do filho da puta continuar a comportar-se
como um filho da puta, há que ponderar que as putas são trabalhadoras
sexuais, que ao referirmos a mãe de alguém, seja ela trabalhadora sexual
ou não, temos de considerar se estamos a falar da mãe biológica ou não
biológica ou da mãe companheira da outra mãe e que, para evitar mais
quezílias, o melhor será desistir de falar de filhos ou de filhas pois
automaticamente incluímos o ser objecto da nossa ira num género (uma
sociedade que trocou o sexo pelo género não está de facto boa da
moleirinha!) ao qual não sabemos se ele quer pertencer. No fim o nosso
filho da puta passará a “pessoa com relação de parentalidade com
trabalhadora sexual” mas nós ficamos com a alma livre de escarmento.
Para quem tiver dúvidas na matéria aconselho a consulta do Guia para uma Linguagem Promotora da Igualdade entre Mulheres e Homens na Administração Pública,
dado à estampa em 2009, e que entre muitas assombrosas coisas manda que
se diga “a gerência” em vez de “o gerente” ou “a direcção” em vez de “o
director”. (No caso, os directores e os gerentes na hora de lhes
chamarmos “grandes pessoas com relação de parentalidade com
trabalhadoras sexuais” agradecem porque se o director ou a directora têm
nome, a direcção é composta ao certo não se sabe por quem e muito menos
se percebe quem nela decide o quê.)
Se alguém tem ilusões sobre a possibilidade de escapar entre os
pingos da chuva a toda esta doideira é melhor que as perca: no V Plano
Nacional para a Igualdade, Género, Cidadania e Não Discriminação (em
vigor até 2017) o Governo comprometeu-se a encomendar um estudo para
avaliar até que ponto a “linguagem inclusiva” está ser utilizada na
administração pública. (Realmente é melhor que se entretenham na
administração pública porque se chegarem à industria dos moldes ainda
acabam a proibir as peças macho e fêmea). Naturalmente o estudo dirá que
muita coisa ainda está eivada da terminologia anterior à linguagem
inclusiva. E um novo guia de linguagem inclusiva e novos estudos sobre a
aplicação da linguagem inclusiva se seguirão. Até ao dia, claro, em que
os promotores da linguagem inclusiva descobrirem que esta não faz
qualquer sentido e passem a defender o seu contrário com idêntico
fervor, idênticas avenças e correlativa proliferação de gabinetes de
estudos destas rentáveis temáticas. graças às quais em muitas
universidades se tem substituído o saber pelo proselitismo.
Na verdade nestas matéria já nada me espanta desde que, meados do ano
passado, descobri que os programas e secções de jardinagem muito
populares em países como a Inglaterra e a França andavam a ser
criticados pela sua terminologia racista e discriminatória – é o
problema da mosca negra, das espécies invasoras, as pragas de plantas
exóticas… A obsessão com o racismo tem levado a paradoxos tais que no
futuro terão de fazer glossários para que se perceba o vocabulário que
criámos nesta matéria: assim, depois da igualdade entre as raças
passou-se para as etnias, mais as comunidades e agora andamos nos afro
isto e aquilo versus os europeus. Resultado: um negro que viva em
Portugal há várias gerações ou que nunca tenha posto os pés em África é
designado como africano, ao passo que um branco, mesmo que tenha nascido
em África e descenda de uma família radicada naquele continente há mais
de um século nunca deixa de ser europeu. (Essa foi aliás a lógica que
não só levou a que se chamassem retornados aos portugueses que fugiram
de África de 1974 a 1976 mas também a que, contra todas as evidências,
políticos e jornalistas tenham apresentado essa fuga como um
comportamento exclusivo dos brancos).
Boa parte deste nosso linguarejar não faz qualquer sentido. Por
exemplo, manda a novilíngua em alguns países ditos mais evoluídos nas
questões da multiculturalidade que não se diga Estado Islâmico mas sim
Daesh para não ofender os muçulmanos, alteração que faz tanto sentido
quanto designar os cruzados por octognos ou paralelipípedos rectângulos
na hora de criticar as cruzadas, alegando que usar o termo cruzados pode
ofender os cristãos que têm na cruz o seu símbolo sagrado.
Podia fazer quase uma edição completa do Observador com exemplos dos
absurdos a que o politicamente correcto nos conduziu. Na linguagem e não
só. Todos os dias há uma polémica. Vivemos em frenesi. Anteontem o
problema era a publicação por uma editora da revista Vogue de uma foto
onde se via uma mulher com ar de pedinte (agora deve dizer-se sem-abrigo
mas preparem-se porque daqui a uns meses esta designação agora tão
certinha pode tornar-se maldita!) a ler aquela revista de moda
acompanhada da legenda: “Paris está cheio de surpresas… há leitores da
Vogue até nos sítios mais insuspeitos”. Também tivemos o problema das gaffes
de Jeremy Clarkson, um muito apreciado apresentador da BBC a quem um
murro dado num produtor acabou com uma longa carreira a dizer
banalidades que se tornaram blasfémias. O problema como é óbvio não foi o
murro mas sim ele obstinar-se em fazer considerandos politicamente
incorrectos sobre sexo, culturas, países… De caminho, o Daily Telegraph
até fez um levantamento dos 14 filmes mais politicamente incorrectos e,
na prática, do James Bond ao Dumbo, tudo é um repositório de racismo e
outros ismos.
Não nos bastando a constante supervisão do presente, o próprio
passado é revisto. E assim, de Camões a D. Pedro I sem esquecer Inês de
Castro ou a padeira de Aljubarrota os protagonistas passam a ser
apresentados como bons ou maus (o maniqueísmo está vivo e recomenda-se)
em função dos conceitos que o progressismo manda adoptar no presente.
Logo D. Afonso Henriques passa a machista e Dona Teresa a feminista. Os
próprios clássicos podem ter de ser reescritos. Das Aventuras de Huckleberry Finn
aos filmes sobre a vida de Jesus, em que se analisa o papel dos negros e
das mulheres nada escapa a esta perspectiva correctora do passado, do
presente e do futuro.
Como exclamam alguns venezuelanos emigrados em Espanha quando recordam o seu país antes da revolução bolivariana “Esse era o tempo em que nós éramos felizes e não sabíamos”. Também a mim me apetece dizer que tenho saudades do tempo em que acreditámos – pelo menos eu acreditei – que combater aquilo com que não concordávamos era apenas isso: combater aquilo com que não concordávamos e não criarmos as metástases do Comité de Saúde Pública, de Rousseau. Esse era o tempo em que éramos livres e não sabíamos. E eu tenho saudades dele.»
Como exclamam alguns venezuelanos emigrados em Espanha quando recordam o seu país antes da revolução bolivariana “Esse era o tempo em que nós éramos felizes e não sabíamos”. Também a mim me apetece dizer que tenho saudades do tempo em que acreditámos – pelo menos eu acreditei – que combater aquilo com que não concordávamos era apenas isso: combater aquilo com que não concordávamos e não criarmos as metástases do Comité de Saúde Pública, de Rousseau. Esse era o tempo em que éramos livres e não sabíamos. E eu tenho saudades dele.»
(Artigo de opinião de Helena Matos, intitulado "Saudades do tempo em que éramos livres e não sabíamos", publicado no jornal online "Observador" no dia 2015.03.15)
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