Vale a pena ler esta carta do escritor João Tordo sobre seu pai, o cantor e compositor Fernando Tordo. E depois reflectir sobre o que (nos) está a acontecer. Aqui ficam dois excertos:
«Ontem, o meu pai foi-se embora. Não foi e já volta; emigrou para o
Recife e deixou este país, onde nasceu e onde viveu durante 65 anos. A
sua reforma seria, por cá, de duzentos e poucos euros, mais uma pequena
reforma da Sociedade Portuguesa de Autores que tem servido, durante os
últimos anos, para pagar o carro onde se deslocava por Lisboa e para os
concertos que foi dando pelo país.
.../...Os nossos governantes têm-se preparado para anunciar, contentíssimos,
que a crise acabou, esquecendo-se de dizer tudo o que acabou com ela. A
primeira coisa foi a cultura, que é o património de um país. A segunda
foi a felicidade, que está ausente dos rostos de quem anda na rua todos
os dias. A terceira foi a esperança. E a quarta foi o meu pai, e outros
como ele, que se recusam a ser governados por gente que fez tudo para
dar cabo deste país - do país que ele, e milhões de pessoas como ele,
cheias de defeitos, quiseram construir: um país melhor para os filhos e
para os netos. Fracassaram nesse propósito; enganaram-se ao pensarem que
podíamos mudar. Não queremos mudar. Queremos esta miséria, admitimo-la,
deixamos passar. E alguns de nós até aí estão para insultar, do
conforto dos seus sofás, quem, por não ter trabalho aqui - e precisar de
trabalhar para, aos 65 anos, não se transformar num fantasma ou num
pedinte - pegou nas malas e numa guitarra e se foi embora. Ontem, ao
deitar-me, imaginei-o dentro do avião, sozinho, a sonhar com o futuro;
bem-disposto, com um sorriso nos lábios. Eu vou ter muitas saudades
dele, mas sou suspeito. Dói-me saber que, ontem, o meu pai se foi
embora.»
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