(De Camilo Castelo Branco, em "O vinho do Porto. Processo de uma bestialidade inglesa. Exposição a Tomás Ribeiro", 1884)
(continuação)
No dia seguinte deu-me de jantar trouxas de recheio, bifes de presunto de Melgaço e meio melão. O médico assistente, o João Ferreira, grande clínico, veio à tarde, e pôs-se a farejar. - Que lhe cheirava a melão! se eu praticara a loucura de comer melão?! A Gertrudes acudiu à minha perplexidade: - que fora ela quem o comera; que eu, coitadinho, estava a caldos e asa de franga, uma desgraça!
O doutor tomou-me o pulso, e fez um gesto de satisfação tranquilizadora:- que eu estava melhor quanto ao pulso, um pouco rápido, mas regular; auscultou-me a região precordial; já mal percebeu o ruído de fole; porém, continuava a fariscar o melão, desconfiado, chegando o seu descompassado nariz absorvente ao meu pérfido hálito, quando me auscultava as artérias carótidas.
À noite, visitou-me outro médico, interessado na minha cura duvidosa, como amigo. Era Câmara Sinval, lente da Escola Médico-Cirúrgica, um que pregava, não por hipocrisia, mas por paixão desvairada da Arte dos Vieira e Bourdaloue, sermões ultramontanos empavesados de sapiências académicas com grandes empolas de latim pagão. Nunca me receitava. Para as insónias mandava-me ler filósofos e poetas épicos. Disse-me que, na sua clínica, empregava primeiro as epopeias desde a Ilíada até à Henriqueida; e, em último recurso, os sistemas filosóficos desde Platão até Victor Cousin. Que tivera - contava - um doente de insónia rebelde que resistira singularmente ao 1.º e parte do 2.º Canto dos Lusíadas; mas, perdidas as esperanças de anestesia, lhe lera duas páginas de Kant, e o enfermo ficara sopitado num letargo de Epiménides. Aconselhou-me a Homeopatia, medicina inofensiva e de vantagem para fantasistas supersticiosos. Apenas lhe achava o defeito de ter entre os seus medicamentos uma Eufrásia e uma Inácia; por que, se tivesse também uma Atanásia, seriam as três Parcas com pseudónimos letais. Entretanto, achou-me espantosamente melhor. Não acreditava. Queria saber o que eu tinha tomado. Referi-lhe a verdade - as mãos de boi, os bifes de presunto, as trouxas, o melão, a Providência, sobretudo a Providência na pessoa de Gertrudes.
- É uma grande clínica a Gertrudes, disse ele; mas, se ela amanhã lhe der lampreia, congro de caldeirada, timbale de camarões ou salada de pepino, aconselho-lhe que se abstenha. A morte pela fome e a morte pelo enfartamento andam sempre de braço dado.
- Mas, se a Natureza pede ... - atalhei plagiando Gertrudes.
- Nada de panteísmo. A Natureza compõe-se de dois elementos em proporções desiguais: Deus como um, e Diabo como três. Sou maniqueu. Apenas concedo ao Bem a quarta parte de acção na regedoria do Universo. O Diabo é quem faz os venenos dos vegetais e dos minerais, o frio que gela o sangue e o calor que abrasa o cérebro, e a hidrofobia, e o raio e os terramotos, e a cólera asiática, os miasmas homicidas dos pântanos e cavernas, e, sobre todos os flagelos, o homem que, fornecendo uma pequena parte de si, uma costela, produziu essa péssima coisa - a mulher. Não se fie na natureza, e muito menos na humana, porque essa é a mais corruptível, e a mais fétida quando apodrece de todo. Por enquanto vá comendo as mãos de vaca; mas fique por aí que não vá meter os pés pelas mãos.
Isto, com embrechados de latim de Horácio e da Bíblia, abalou-me quanto à dieta.
(continua)
Sem comentários:
Enviar um comentário