terça-feira, 23 de junho de 2009

A anemia (2)


(De Camilo Castelo Branco, em "O vinho do Porto. Processo de uma bestialidade inglesa. Exposição a Tomás Ribeiro", 1884)

(continuação)

- E morre decerto! - confirmou ela com sinistra solenidade - morre, se não mudar de comida. Quer que eu o ponha rijo? Diga à dona da hospedaria que a sua enfermeira e cozinheira sou eu.

Não esperou resposta e saiu. Pouco depois, voltou muito afreimada, tirou a mantilha de sarja, mudou de calçado para não fazer bulha com os tacões das botinhas, cingiu um lenço na fronte recolhendo os bandós, atou um avental de riscadinho na cintura e foi para a cozinha. Quando entrou com uma caçoila coberta, o perfume vaporado do rebordo da tampa abriu subitamente no meu olfacto uma fonte de vida, uma sensação entre espiritual e nasal, um quase êxtase, como a evidência da imortalidade do eu. Arranjou a mesa de leito com o talher, afofou-me as travesseirinhas nas costas angulosas, escadeadas como um pedaço de velho cancelo desengonçado, a cair das dobradiças despregadas, - e passou para uma travessa o acepipe fumegante. Eram duas mãos de boi guisadas, loiras, de uma untuosidade oleosa que punha carícias ferozes nos dentes, e aguçava na abóbada palatina as cobiças dantescas do faminto Ugolino e de um professor português de instrução primária. Devorei uma das mãos, sopeteando no molho pedaços de pão que engolia inteiros, sofregamente, numa entalação.

- Poderei comer a outra mão, sr.ª Gertrudinhas? - perguntei esperando em ansiosa incerteza a resposta duvidosa.

- Se tem vontade, coma. Que sente lá por dentro?

- Fome, sr.ª Gertrudes, fome!

- Então coma; a Natureza que lho pede, é porque não lhe faz mal.

E não fez. Fumei um charuto que até àquele momento me nauseara. Pedi café e cana de Paraty. Estive quase a pedir as calças para me levantar.

- Nada de boticadas! - intimou ela; e, pegando em dois frascos de pílulas de ferro de Blaud e de Vallet, e de meia garrafa de vinho quinado despejou tudo na primeira vasilha côncava que se ofereceu à sua indignação. - Fora com a porcaria! - bradava gesticulando, com a cólera científica e a justiça indefectível de um médico homeopata.

(continua)

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