segunda-feira, 22 de junho de 2009

A anemia (1)


(De Camilo Castelo Branco, em " O vinho do Porto. Processo de uma bestialidade inglesa. Exposição a Tomás Ribeiro", 1884)

Agora te vou contar como ela me salvou aos vinte e três anos.

Em 1849, a invasão súbita de uma anemia vampirizou-me o pouco sangue desoxigenado, desfibrinado, e me pôs os ossos em decomposição gelatinosa, a ponto de me deixar em uma ressicação ósea; e, se eu ia durando, é porque já me não restava carne em que se aferrasse a garra adunca da dura Parca de então, ou da «sinistra rameira» como ultimamente lhe chamam os vates.

Gertrúria, desde que eu fui à cama, visitava-me amiúdo no Hotel-Francês, na rua da Fábrica, um velho palácio que tinha ao rés da rua a oficina e escritório do Nacional, redigido pelo professor egresso António Alves Martins, Almeida e Brito, Damásio, Parada Leitão, Nogueira Soares, Evaristo Basto, Lobo Gavião. Eu tinha a meu cargo a secção das frioleiras.

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O palácio ardeu; os meus mestres e camaradas do Nacional morreram todos; e este arcaboiço, que resta e conserva o nome que eu tinha então, devem-o à Gertrudes a literatura nacional e as dezenas de boticas que eu tenho consumido, como um suicida recatado que não quer escândalos.

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Assistira, um dia, Gertrudes ao meu jantar e viu que eu me confrangia enjoado pelo espectáculo repulsivo de meia franga recozida e um caldo branco em que boiavam uns olhos amarelos da enxúndia do oveiro da ave. Ela cheirou de longe o caldo fumegante, e disse com engulho:

- Captiva! isto nem com fome de cão se podia tragar!

Que o médico me não deixava comer outra coisa - balbuciei tão extenuado e ofegante que me parecia despegar-se o último colchete da existência num esvair de desmaio.

- Sinto-me morrer ...- murmurei flebilmente.

(continua)

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