terça-feira, 10 de setembro de 2019

Onde é que António de Oliveira Salazar é uma ameaça nos dias que correm?

Com a devida vénia, eis a lúcida crónica de opinião de João Miguel Tavares intitulada "O fantasma de António de Oliveira Salazar", publicada hoje no jornal "Público",

«António de Oliveira Salazar é o fantasma mais rentável de Portugal. O seu nome está na capa de centenas de livros que vendem dezenas de milhares de exemplares. A sua vida privada é alvo de especulações picantes e de séries de televisão. O seu legado anima concursos polémicos sobre os grandes portugueses. Salazar preenche a vida de salazaristas e de anti-salazaristas, e embora os segundos sejam muito mais numerosos do que os primeiros, fingem não ser, para se acharem importantes. Salazar paga as contas a uma vasta legião de historiadores ocupados a patrulhar o seu legado, e aquilo que sobre ele podemos dizer e pensar. Salazar anima a vida de inúmeros activistas que o transformaram no seu monstrinho favorito. Salazar bate recordes num dos mais reconfortantes passatempos nacionais: a assinatura de petições públicas para impedir pessoas de fazerem coisas. Salazar está morto e enterrado há 50 anos. Mas o seu cadáver continua a provocar tremendas paixões.

A paixão deste Verão foi o chamado “Museu Salazar”, que afinal se irá chamar “Centro Interpretativo do Estado Novo”. O dito museu começou por ser acusado de fazer a apologia do salazarismo, com a intenção malévola de levar charters de fascistas a Santa Comba Dão, e acabou com os seus promotores a garantirem que iria “incomodar” imensos salazaristas, porque as ditaduras são regimes desagradáveis. É verdade que são. E é também verdade que a velocidade com que se passa de salazarista a anti-salazarista em Portugal é tão grande, que o fenómeno vem comprovar a minha tese: uns e outros são duas faces da mesma moeda. Ambos são inquilinos das mesmas ruínas onde habita o fantasma de Salazar. E ambos têm um cheiro a mofo que já não se atura em 2019.

Abram os olhos, meus senhores. Onde é que António de Oliveira Salazar é uma ameaça nos dias que correm? Quem é hoje realmente salazarista? Quem é que sonha com uma sociedade fechada ao exterior, com um ditador paternalista, com uma polícia política, com a tortura e a censura, com o partido único, com a repressão das liberdades individuais, com o velho pai de família, com a proibição de livros e o corte de filmes, com “Uma Casa Portuguesa” elevada a canção nacional, com a filosofia do pobrete mas alegrete? Deixem-me dar-vos uma notícia chocante: Salazar morreu há meio século, e com ele morreu um triste regime que durou outro meio. Importa conhecê-lo e não há qualquer razão para temê-lo.

Portanto, façam o museu, o anti-museu, o pós-museu, o que der na gana a quem tiver entusiasmo para isso, porque Santa Comba Dão não é o Vale dos Caídos, nem nunca será. A única coisa que Salazar é em 2019 – não custa muito percebê-lo, se se meter o esqueleto no armário – é uma boa história, uma personagem que atrai pela singularidade, um homem que praticamente mandou sozinho no país durante quatro décadas, sem que ninguém tenha sido capaz de correr com ele. Nunca se casou, nunca saiu do país (excepto umas breves viagens à fronteira espanhola), tinha cabeça de técnico oficial de contas, criava galinhas em São Bento, montou uma ditadura de baixa intensidade que se revelou extraordinariamente sólida.

Os livros vendem-se e os museus abrem-se porque a sua história é única e bizarra, e isso nada tem a ver com o desejo de ressuscitar o salazarismo ou regressar a um passado que só foi bom para quem não o viveu. Ser anti-salazarista em 2019 é uma patetice. Mais: é uma afronta aos que efectivamente resistiram a Salazar, e não ao seu fantasma.»

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