Excerto da assertiva crónica de opinião de Henrique Raposo intitulada "Nunca foi tão difícil ser pai (ou mãe)", publicada ontem na "Newsletter Renascença", que merece ser lida na íntegra. Com a habitual e devida vénia,
.../...«No tempo antigo, os pais batiam, davam palmadas e estalos com naturalidade. Hoje, uma palmada dá remorsos para um ano. É uma evolução positiva, quero ser um pai, digamos, constitucional e não um pai tirano. Mas, como se sabe, a democracia é mais caótica e trabalhosa do que a tirania.
No tempo antigo, havia algo que garantia a sanidade dos pais: a rua. Ainda nos anos 80 e 90, nós podíamos brincar o sábado e o domingo inteiros na rua sem nenhum adulto por perto. Se nos dava liberdade, responsabilidade e calo, a rua dava sossego aos pais, que podiam ficar sozinhos em casa. Isso desapareceu. Hoje, os fins-de-semana podem ser sufocantes. Os pais têm de andar com os filhos de um lado para o outro. A rua tem de se recriada em espaços fechados e vigiados pelos adultos. Claro que este cerco à vida adulta desgasta, claro que adia o primeiro ou o segundo filho, claro que torna o terceiro num acto heróico. Fiquemos na rua. No tempo antigo, havia sempre alguém na rua para tomar conta das crianças, uma tia, uma avó ou prima, um avó, um tio. Os familiares estavam perto uns dos outros. Ir ao médico ou ir ao cinema não era um drama nem uma operação logística (babysitter). As famílias eram grandes e apoiavam-se. Hoje, as famílias são minúsculas, envelhecidas e fragmentadas. Uns estão em Coimbra, outros em Lisboa, outros no estrangeiro. Mesmo pensando apenas numa área metropolitana, as distâncias são enormes. Viver em Lisboa e ter o irmão em Loures é impraticável para o dia-a-dia. O tio de Loures não pode apoiar o dia-a-dia do sobrinho de Lisboa, e vive-versa.
Termino com uma confissão. Os pais de crianças (plural; dois ou mais) sentem-se sozinhos, isolados, sem reconhecimento, sem compreensão dos outros. Os mais velhos, os nossos pais e avós, não percebem bem as nossas dificuldades, porque medem as coisas pelos anos 80 e 60. Mas, como já vimos, não há comparação possível. O grau de exigência de 2018 não tem comparação com o de 1988 ou 1968. Além da inflação perfeccionista na escola e nas actividades (da piscina ao karaté), além das obsessões médicas e alimentares, além do turismo das festas, além da ausência da rua, há ainda outro ponto fundamental: o inferno de estímulos visuais que é o tandem tv cabo - internet. Um miúdo em 2018 recebe mais estímulos visuais num dia do que eu recebia numa semana ou mais. Como não têm este factor em mente, os avós muitas vezes são injustos com os pais. Por outro lado, os pais de hoje olham para a sua própria geração e vêem muita gente a não partilhar o fardo. Por uma série de razões, a minha geração não abraçou a família como valor central. Às vezes, confesso, fico a remoer, Estamos pra'qui quase sozinhos a levar o barco às costas? Estamos pra'qui a fazer sacrifícios enquanto tudo à volta está na vidinha descansada sem filhos? Bem sei que tenho de ser como o filho mais velho da parábola, tenho de aceitar e passar à frente. Mas custa.
Em 2018, ser pai ou mãe é um trabalho esgotante do que não tem o reconhecimento merecido junto dos avós que foram pais há décadas, junto dos eternos trintões sem filhos, junto dos média que destratam o tema como “lifestyle”, junto do estado que não respeita o pai contribuinte, junto da segurança social que nunca colocará os pais à frente dos não-pais no cálculo das reformas. Podem berrar, podem espernear, mas velhos e novos têm de ouvir: ter filhos (plural) nunca foi tão difícil. Quando passarem ao pé de um pai ou mãe com dois ou três filhos à ilharga, tenham por favor a humildade para dizer, Obrigado!»
Sem comentários:
Enviar um comentário