Crónica do humorista e médico Carlos Vidal, publicada no passado dia 27 de Julho no "SAPOLifestile" com o título "Patologia crónica: o comprimido de banha da cobra". Com a devida vénia,
«O facto de o gato sentir que não falece à primeira adversidade é que o faz correr o risco. Claro que não sabe que pode prevaricar sete vezes. Chega-lhe a garantia de o poder fazer mais do que uma, ganhando a margem que o faz cair vastas vezes, em falhas consecutivas. Os gatos não aprendem com os erros. Os humanos, que se intitulam a espécie mais evoluída, também não. E é aqui que uma suposta racionalidade e uma aparente irracionalidade se encontram.
Somos forçados a preocupar-nos com a ambiguidade em relação à saúde, ao sucesso e ao insucesso, conforme já tive oportunidade de referir anteriormente. Senão vejamos: se algo corre mal, o doente processa o médico. Se o doente recorre a uma terapia alternativa ou a algo não provado cientificamente e corre mal, o doente diz que a culpa é dele próprio, porque "eu é que quis lá ir, doutor". Se uma intervenção médica corre mal, é graças ao médico. Se corre bem, é graças a Deus. Portanto, confirma-se que a única coisa que continua a ser justa no mundo são as leggings da Simara.
A evolução da espécie permite-nos primar pela ironia. Faz com que não se tome Viagra, prescrito pelo médico, com a premissa de que faz mal ao coração, mas se tome Calcitrin, prescrito pela Simone de Oliveira. Com a agravante de que, um excesso de cálcio no sangue, é responsável pelos problemas cardiovasculares que tentaram evitar com a toma do Viagra.
Não sei qual a vossa opinião, mas eu preferia que o tema de conversa no meu funeral fosse a dificuldade em fechar o caixão, em vez do facto de estar morto mas com uns ossinhos duros de roer. Ter uns ossos rijos num corpo também ele rijo, pelo rigor mortis, é tão útil para a nossa saúde como a opinião do Hernâni Carvalho em relação à solidariedade portuguesa com os fogos florestais da Suécia. Por isso, e a ter que ser, continuo a preferir uma morte à professor Alexandrino: "firme e hirto como uma barra de ferro".
Viver sem regra não nos ensina a lidar com a frustração, e tomar Calcitrin sem regra não nos ensina a lidar com a obstipação, de fazer corar uma qualquer Cimpor. É que um suplemento feito tantas vezes, passa a ser refeição.
Sou da opinião que as primeiras 50 pessoas a ligar para adquirir este suplemento deviam ser contemplados com caixas de Calgon, para protegerem o organismo do calcário e ficarem com o mesmo limpo e eficiente. E um barril de Castrol, para ajudar a olear as juntas. Mas calma, não há só desvantagens: podem sempre, a posteriori, filtrar o sangue numa pedreira e poupar dinheiro na lápide.
A culpa de tudo isto é da modernização, são sinais dos tempos. Antigamente, quem queria ter cálcio instantaneamente, sem regra ou prescrição, não tomava um comprimido, comia o leiteiro.
O mesmo acontece com o Cogumelo do Tempo que - dizem eles - serve para protecção e anti-envelhecimento das células. Claro que sim. Aliás, até acredito que atrase o envelhecimento e a doença de Alzheimer porque, pelo menos, têm que se lembrar de tomar duas cápsulas todos os dias e o preço não lhes sairá tão cedo da memória. Na minha ideia, só se chama Cogumelo do Tempo por referência ao tempo que vão ter que ficar à espera até sentirem efeito.
Um dos constituintes deste suplemento é a noz pecan - que, numa primeira leitura, parece uma noz alentejana que transgrediu o preceito religioso -, que vem da Amazónia, vejam bem. Reparem que há aqui um empenho em tornar o produto exclusivo, caso contrário seria uma qualquer noz de Mem Martins. E, convenhamos, sabendo que a noz pecan vem da Amazónia, quem se importa de dar um balúrdio por uma caixa de suplemento? Eu, pelo menos, não me importava nada de comer um bolo com bicarbonato de sódio da Antártida, como é óbvio.
O que me baralha aqui tem a ver com o facto de ter nascido nos anos oitenta. Nessa altura, quando ouvíamos falar do Cogumelo do Tempo, tratava-se de um cogumelo que ajudava a passar o tempo ou a perder a noção do mesmo. Podia não proteger as células do envelhecimento, mas dava para falar com um tio que já morreu ou entrar todo nu num comboio da CP, dizendo ser o pica. Claro que, hoje em dia, teria o efeito colateral de poder dizer tudo o que penso sobre suplementos de banha da cobra, pelo que não convém abusar.
Há uma lavagem cerebral moderna com os condimentos minuciosamente combinados. Creio que se houvesse uma campanha protagonizada por uma cara conhecida, para ligarem para o 760 e troca o passo, com aquela coreografia com palmas e gritos entre os números, apregoando que se ligar já habilita-se a hipotecar a sua casa, perder a guarda dos seus filhos, receber uma caixa de Calcitrin e uma de Cogumelo do Tempo e, os primeiros 50, recebem um spray de Amukina que - segundo estudos com a mesma validade dos suplementos- funciona como higiene íntima porque, se funciona na alface, é certo que desinfeta o seu manjerico, as pessoas ligavam na mesma.
Vivemos tempos estranhos, com duvidosos incentivos à aquisição, nos quais tudo é, inquestionavelmente, um negócio. E só vos digo isto porque, se ligarem já o 760 não sei quê, não sei que mais, habilitam-se a ganhar uma boa dose de bom senso, meia de noção e um paninho para as embrulhar.»
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