quinta-feira, 7 de junho de 2018

Devemos ser cuidadosos quando pedimos mais investimento para o Serviço Nacional de Saúde

Primeira parte do artigo de opinião de António Vaz Carneiro, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (FMUL) e director do Centro de Estudos de Medicina Baseada na Evidência da FMUL, intitulado "Devemos ser cuidadosos a pedir mais investimento para o SNS?", publicado na revista "Visão" do dia 9 de Maio de 2018. Com a devida vénia,


«Uma das experiências mais frequentes por que qualquer doente passa é o de lhe serem aconselhadas por dois médicos diferentes duas soluções diversas para o seu problema de saúde.

Na maior parte das vezes, este facto justifica-se pela variabilidade das interpretações dos médicos em relação a um mesmo problema clínico, os seus conhecimentos científicos sobre a patologia específica, a sua experiência de situações semelhantes, o grau de eficácia relativa das diversas opções de tratamento (por exemplo) e até as expectativas dos doentes. Ou seja, em muitas situações não existe uma solução clara e inequívoca, podendo haver alternativas igualmente válidas, ainda que diferentes.

Nos anos 80, as autoridades inglesas descobriram que a probabilidade de uma doente com cancro da mama ser tratada, e com que tipo de intervenção, dependia do local onde essa doente vivesse: nuns lados era predominantemente operada, noutros fazia radioterapia, noutras ainda fazia quimioterapia. E isto para o mesmo tipo histológico de cancro (i.e. o mesmo tipo de célula tumoral), com o mesmo estadio de desenvolvimento e com a mesma idade da doente. Este fenómeno, que ficou a ser designado por “tratamento por código postal”, foi umas das bases do movimento da qualidade em saúde a nível mundial.

Este fenómeno que temos estado a falar chama-se variação da prática clínica, que se define como uma prática utilizando, em doentes semelhantes (na doença que têm e no seu risco basal), testes diagnósticos diferentes e esquemas terapêuticos diversos. Isto é: as abordagens práticas não são explicáveis pelas diferenças clínicas dos doentes, mas sim pelas diferenças nos padrões de prática dos médicos.

É fácil de compreender, mesmo para os não especialistas, que a variação da prática clínica constitui um problema importante em termos de qualidade em saúde, já que é difícil de aceitar que dois processos tão diferentes possam ambos ser adequados ao doente específico. Entre nós, os grupos da Escola Nacional de Saúde Pública e do Centro Hospitalar Lisboa Ocidental publicaram diversos dados sobre diferenças muito marcadas no nosso SNS, desde as taxas de internamento hospitalar às cirurgias coronárias, das taxas de cirurgia após fractura do colo do fémur às de cesarianas, para só mencionar algumas áreas clínicas.

Chegados até aqui, será então de perguntarmos qual é o mais importante: aumentar os recursos nas áreas de menor intensidade clínica, precisamente as que sub-tratam os doentes e a que todos os doentes deveriam ter acesso (por ex. não modulando correctamente o colesterol, não tratando efectivamente a diabetes ou a depressão), ou em alternativa reforçar as práticas que tratam correctamente os doentes (na base da melhor evidência científica e da experiência profissional), apoiando-as com os recursos disponíveis?

A resposta parece evidente, mas na realidade não o é.».../... 

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