sexta-feira, 19 de junho de 2015

Porque é que cada português não tem ainda um médico de família?

«O artigo do secretário de Estado adjunto do ministro da Saúde (SEAMS), publicado no jornal Público em 11 de Junho, intitulado “Opiniões e percepções” em Saúde, legitima uma resposta com base na verdade dos factos.

Independentemente das percepções e opiniões divulgadas recentemente, com base em estudos ou inquéritos de reconhecido mérito, que de resto traduzem o sentir da sociedade civil que diariamente utiliza ou trabalha no SNS, o que é que leva o SEAMS a mais uma vez tentar desacreditar os resultados e as evidências justificando o injustificável. Senão vejamos:

1. Entre 2010 e Maio de 2015 aposentaram-se 3031 médicos a nível nacional.

2. Na região norte, entre Janeiro de 2011 e Maio de 2015, aposentaram-se 401 especialistas em Medicina Geral e Familiar (MGF), dos quais 370 (92,27%) de forma antecipada (54,6% tinha entre 55 e 60 anos e 41,1% entre 61 e 65 anos).

3. Na região norte, entre 2012 e 2014 emigraram 232 médicos (119 em 2014). Os especialistas que mais optaram pela emigração eram de MGF. A principal razão que levou os médicos a emigrar foi a procura de melhores condições de trabalho.

4. Dados publicados em 2011 pela OCDE/Federação Europeia de Médicos Assalariados mostram que Portugal é um dos países da Europa em que os médicos têm salários mais baixos (apenas Grécia, República Checa, Polónia, Hungria, Roménia e Bulgária ficam atrás de nós).

5. A despesa pública com a Saúde (orçamento de Estado) representa 5,9% do PIB. Entre os parceiros europeus, apenas Hungria, Polónia e Estónia investem proporcionalmente menos dinheiro público nos cuidados de saúde.

O investimento feito directamente pelos doentes na saúde representava 27% da despesa total registada em 2014. Um valor que coloca Portugal como o sexto país da OCDE que mais despesa individual exige à sua população.

Entre 2012 e 2014, a contracção do orçamento público para a Saúde foi superior a dois mil milhões de euros.

6. Entre 2011 e 2013 (PORDATA) já saíram da função pública cerca de 250.000 pessoas e já emigraram cerca de 350.000!

Neste cenário, não é difícil imaginar os pequenos milagres diários que as instituições e os profissionais estão obrigados a realizar para manter um nível de resposta aceitável às populações.

O que mudou então para que desde 2011 tantos médicos tenham decidido aposentar-se antecipadamente mesmo com grandes penalizações pessoais? Ou para que a taxa de emigração tenha aumentado de forma exponencial?

A resposta não é difícil e ajuda a entender as “Opiniões e percepções” que parecem ter “irritado” o SEAMS.

A desqualificação e a forma indecorosa como muitos médicos têm sido tratados pela tutela, o degradar das condições de trabalho, o aumento da pressão na relação médico-doente traduzido em tempos de consulta inaceitáveis, os sucessivos cortes salariais, a imposição de sistemas informáticos disfuncionais, o aumento dos casos de violência contra profissionais de saúde, a opressão insustentável e o clima de “medo e censura” instalado, as constantes transformações legislativas no que respeita ao acesso à aposentação e o incumprimento na aplicação prática das carreiras médicas, ajudam a explicar a maioria daquelas decisões.

Serão precisas mais explicações ou estudos para entender porque é que a nossa percepção (com base na verdade dos factos) é diferente da percepção do SEAMS?

Será que ainda não percebeu porque é que cada português não tem ainda um médico de família?»

(Artigo de opinião intitulado "A verdade dos factos", da autoria do dr. Miguel Guimarães, Presidente do Conselho Regional do Norte da Ordem dos Médicos, publicado no jornal "Público" de 17 de Junho último)

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