.../...«a crise não está a atingir apenas as classes mais baixas. Luís Fernando, administrador executivo do grupo privado MediaNova (que tem a Exame ou o jornal O País), não tem dúvidas: “A crise não está nos jornais nem é uma conversa de economistas, está aí, é real.” Está a afectar as classes média e alta - hoje é mais difícil ir de férias, usar cartões de crédito, fazer tratamentos de saúde no estrangeiro - “podendo, ninguém aceita fazer uma intervenção mais séria em Angola”, lembra.
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Militante do MPLA, lembra que “em boa hora aconteceu esse problema com o petróleo”, que acaba por ser uma maldição. “Angola tem os melhores pastos do mundo, vá verificar esses pastos e não há vacas a pastar. Se temos dinheiro a jorrar das plataformas de petróleo, é mais fácil comprar a carne lá fora. Este é o país que não produz rigorosamente nada, nem um pente. Não é normal que 24 milhões comam coisas vindas de fora. Não há nada na nossa produção que não dependa do estrangeiro. Se produzo frango, há algum elo na cadeia produtiva que depende do estrangeiro - quanto mais não seja o técnico. Se não tenho divisas para importar a maquinaria, vou ficar encalhado, entrar em colapso. Criámos uma cultura dos petrodólares.” É urgente, por isso, apostar na diversificação da economia, mas isso será feito ao longo de várias gerações, lembra.
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Apesar da quebra, o petróleo continua a produzir riqueza. Só a sua exportação em Janeiro, a partir de dez concessões, rendeu cerca de 1,16 mil milhões de euros. É preciso, então, sair das estradas de terra batida para ver onde está essa riqueza.
Do alto de um arranha-céus, à noite, as luzes dos prédios fazem de Luanda uma cidade que se mostra cosmopolita. Na varanda do Dooh Bar, o bar da empresária Isabel dos Santos, desfilam manequins, há dourados, muitos, e um grau de sofisticação na produção da toilette que já não é frequente ver em muitos sítios de Portugal. Nas mesas espalham-se chocolates e copos com bebidas. Elas e eles vestiram-se a rigor para uma festa de Páscoa. Aqui o champanhe só se vende à garrafa: custa cerca de 250 euros. Um português gestor do negócio de uma da grandes marcas de champanhe, que preferiu ficar sob anonimato, diz que o impacto da crise só se tem notado nas noites, com uma noite forte semanal em vez de três.
Apesar disso, a facturação tem crescido nos últimos dois anos - têm aumentado a capacidade de distribuição e de logística, e chegado a outras cidades além de Luanda, que representa 90% do negócio. Na venda em supermercados, onde uma garrafa custa à volta de 80 euros, a crise não se sente.
Vale, por isso, “muito a pena” estar em Angola a todos os níveis, até porque “a personalidade do consumidor angolano fá-lo ter necessidade de escolher este tipo de produto, a escolha de marcas de luxo para afirmação social ainda é uma prioridade”, continua o gestor. “Não havendo possibilidade de fazer estudos de mercado por causa da falta de informação, nós no nosso dia-a-dia vamos conseguindo fazê-lo. Posso dizer que temos eventos onde um grupo de pessoas chega à festa e pede 50 garrafas de champanhe ao mesmo tempo. Vemos que não vão beber as 50 garrafas, muito menos ao mesmo tempo, mas fazem questão que o ritual seja esse. A questão de se mostrarem como pessoas com capacidade económica está muito presente - isto é notório todas as semanas e de forma recorrente.”
Não deixa de ser paradigmático que o país em que cerca de 37% da população vive abaixo do limiar da pobreza nacional com 40 euros por mês (dados de 2013, estudo do BPI) seja o mesmo que tem um dos maiores consumos de champanhe per capita: as vendas rondaram as 40 mil caixas por ano (240 mil garrafas), sobretudo em Luanda, para um público-alvo estimado de 300/400 mil pessoas. “É muito champanhe para tão pouca gente.”
É o país em que quase 70% da população vive com menos de dois dólares por dia e onde a cesta básica para uma semana custa 50 dólares. É dos países que mais consomem champanhe per capita e onde o lixo amontoado nas ruas convive com carros de luxo. A quebra do preço do petróleo veio levantar bandeiras vermelhas e pôr na agenda o discurso de que a “petrodependência” pode ser fatal: é urgente diversificar a economia, avisam analistas.»
(Excertos do artigo intitulado "Entre o lixo e o luxo, Angola sobrevive à crise" da autoria de Joana Gorjão Henriques e de Sérgio Afonso, publicado no jornal "Público" em 19 de Abril passado)
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