sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Sobre a gratuidade do aborto em Portugal

.../...«O que ali está pode não ser “vida”, mas “vida em potência” é certamente, e este simples facto, em conjunto com uma vontade genuína de compreender os argumentos de ambas as partes, poderia ter conduzido o governo que conseguiu a liberalização do aborto até às 10 semanas a um mínimo de equilíbrio e de prudência quando se tratou de propor a regulação da lei n.º 16/2007. Não foi o que aconteceu. O aborto até às 10 semanas não só passou a ser permitido por opção da mulher, como lhe foi dado um estatuto equivalente ao da gravidez: isenção de taxas moderadoras e licenças até 30 dias pagas a 100%.

.../...Contudo, o Estado, depois de despenalizar, deveria ter-se afastado desta matéria. Ou seja, liberalizava, mas não praticava: permitia o aborto até às 10 semanas, visto ser essa a vontade da maior parte da população, mas não permitia que, fora dos casos já previstos na lei anterior, ele fosse praticado em hospitais públicos, com o dinheiro de todos, incluindo daqueles que entendem que o aborto é a morte de um ser humano.

E isto porque o aborto é mesmo a morte de um ser humano? Não, simplesmente porque não há maneira de chegar a um acordo sobre aquilo que o aborto é, e a questão é de tal modo séria que o Estado deveria respeitar a sensibilidade de 1,5 milhões de pessoas (40% das que votaram em referendo), quando não existe uma forma de as convencer racionalmente de que aquilo que elas defendem está errado. Caberia então à sociedade civil e aos movimentos pró-escolha organizarem-se e autofinanciarem-se, para que as pessoas que não têm meios económicos para pagar um aborto o pudessem fazer gratuitamente em clínicas privadas.

.../...nenhuma pessoa de bom senso pode admitir que a senhora Maria tenha de pagar taxas moderadores se for operada a uma hérnia mas a dona Francisca não tenha de pagar nada se for abortar – e ainda recebe o seu ordenado na totalidade (exactamente como se tivesse tido um filho) se ficar de baixa e abortar várias vezes ao ano (sim, acontece).

.../...as injustiças da actual situação necessitam de ser corrigidas, porque manifestamente passámos do oito para o oitenta. Há oito anos, uma mulher que abortava podia ir parar à prisão. Hoje, ela tem os mesmos privilégios de quem deu à luz. Será assim tão difícil encontrarmos um meio termo?»

(Excertos do artigo de opinião intitulado "A vergonha do aborto gratuito", da autoria de João Miguel Tavares, publicado no jornal "Público" de ontem)

Sem comentários: