«O meu médico aconselhou-me a evitar as gorduras, o colesterol e José
Sócrates, mas depois da entrevista ao Expresso e de todo este burburinho
mediático em torno do lançamento do seu livro, sinto que é meu dever
voltar a ele, por estritas razões patriótico-psicanalíticas. Juro que
não quero estar aqui a repisar a história do seu papel como
primeiro-ministro, nem a fazer comparações entre declarações de
rendimentos e níveis de vida, nem sequer a relembrar o seu amor à
liberdade de expressão. O que eu quero é uma outra coisa: reflectir um
pouco sobre o indiscutível fascínio que José Sócrates continua a exercer
sobre tanta gente, mesmo depois de ter sido derrotado nas condições em
que foi e deixado o país no estado em que está. Isso é único na nossa
democracia, e nesse sentido a entrevista que concedeu a Clara Ferreira
Alves é reveladora como poucas.
E é reveladora porque José Sócrates, talvez por achar que tinha diante
de si alguém capaz de finalmente reconhecer todo o seu brilhantismo, se
esticou muito mais do que é costume, expondo com uma clareza inédita o
seu perfil de macho alfa da política nacional. Tudo naquela entrevista
era bom, começando pelas fotografias de playboy cinquentão e
acabando na linguagem desbragada, que Marcelo Rebelo de Sousa
classificou como "tom infeliz". A mim, pelo contrário, pareceu-me um tom
felicíssimo, no sentido em que mostrou Sócrates sem os véus habituais e
mais de acordo com o perfil do animal feroz.
Tratar o alemão Wolfgang Schäuble por "aquele estupor do ministro das Finanças", classificar uma posição do primeiro-ministro da Holanda como "calvinismo reles", afirmar de si próprio que "sempre fui a merda de um moderado", disparar uns "pulhas" para aqui e uns "bandalhos" para acolá, e despachar os seus opositores políticos como "os filhos da mãe da direita portuguesa", só está ao alcance de alguém para quem "a dureza encenada não é nenhuma dureza. Ou se tem ou não se tem." E Sócrates, claro, é um duro. Donde, o título da entrevista: "Eu sou o chefe democrático que a direita sempre quis ter."
É particularmente significativa a necessidade que sentiu de colocar ali o adjectivo "democrático", não fosse alguém enganar-se no regime. Numa entrevista completamente autocentrada, e construída sobre a imagem do líder decidido e inabalável ("nunca me fui abaixo"), aquilo que sobressai, como uma obsessão, é o action man que só caiu porque foi traído e só não salvou o país porque não o deixaram. Que Sócrates pense isso de si próprio, não chega a espantar - como canta Caetano, "Narciso acha feio o que não é espelho". O que espanta é ele continuar a ter uma vasta corte de fiéis, que certamente não o seguem por causa das suas ideias (quais são?), mas sim porque continuam fascinados com o seu estilo enérgico, desbocado e autoritário.
Por muitas vezes que Sócrates leia a Metafísica dos Costumes (dez vezes, diz ele), este é um costume que não tem nada de metafísico: numa pátria pouco dada à iniciativa individual e que olha para o Estado como um pater familias, o carismático Sócrates, que se acha naturalmente talhado para o exercício do poder, continua a ser o flautista de Hamelin para todos aqueles que não dispensam o macho alfa à frente da manada. Já dizia o sábio de Santa Comba: "Se soubesses o que custa mandar, gostarias de obedecer toda a vida". Tivessem ensinado esta frase a José Sócrates na Sciences Po, e ele certamente assinaria por baixo.»
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