quarta-feira, 24 de maio de 2023

Queremos políticos com este perfil?

Transcrição, com a devida vénia, do artigo de opinião da economista Maria João Marques, publicado hoje no jornal "Público" sob o título "João, Eugénia e etc. Queremos políticos com este perfil?",

«Começo por avisar, para ninguém ler estas linhas ao engano: este não é um texto populista na linha de “os políticos são uns malandros que não fazem nenhum”. Pela razão mais simples: esta ideia é falsa. Os políticos, regra geral, trabalham como uns mouros, têm horários extensos que dão cabo da vida pessoal e familiar, são dedicados à profissão. Regra geral, repito; há exceções, mas a maioria está aqui descrita.

Acumulam com uma enorme responsabilidade - porque o seu trabalho e as suas decisões impactam o país e a vida das pessoas - tremendo escrutínio e ordenados risivelmente baixos. Trespassa de cima abaixo. Nas câmaras, no Governo, no Parlamento, nos gabinetes ministeriais.

As mulheres políticas, então, chocam de frente com uma cultura machista empedernida que as vê como boas para bater palmas aos protagonistas masculinos, serem obedientes e leais a quem as escolhe mas nunca, jamais, o horror, serem agentes políticos com ideias próprias e exercerem o poder sem tutelas. Não há partido que escape a isto.

Em suma: é um pequeno milagre termos pessoas com vontade de passar tempo da sua carreira na atividade política. Sobretudo mulheres. Sobretudo pessoas das minorias étnicas e raciais - estas, nem existindo quotas, são meia dúzia.

Porém, feita a ressalva, volto ao título. Queremos - melhor: é sustentável - mantermos o perfil de políticos que temos agora no Governo? E que não é só problema deste Governo ou do PS, apesar de no PS ser mais saliente, porventura porque governou mais tempo nas últimas décadas; o PSD, vê-se na Assembleia da República e nas câmaras que governa, está praticamente igual.

A que perfil me refiro? - questiona a leitora e o leitor impacientes. Bom, ao tipo de político que protagoniza um falhado pacote Habitação e os sucessivos casos da TAP, que não se esgotam nos recentes eventos tragicómicos envolvendo Galamba e o seu ex-assessor e a sua chefe de gabinete. (Não detalho porque não tenho caracteres disponíveis.) É impossível desligar todos estes eventos do percurso profissional dos políticos que os protagonizaram.

João Galamba. Andou anos em Londres para um doutoramento que não terminou. Passou brevemente por um banco e uma consultora até chegar às nomeações políticas para a presidência portuguesa do Conselho da União Europeia e a seguir, com 33 singelos anos, a deputado.

Eugénia Correia. Assessora de gabinetes ministeriais desde 1996, depois de três anos como docente universitária. Nos poucos intervalos do Governo, foi jurista da CGD, essa outra empresa pública que, tendo o mesmo escrutínio que a TAP, produziria, estou convencida, escândalos ainda mais potentes.

Pedro Nuno Santos. Deputado desde 2005, aos 28 anos. Louva-se a passagem nas empresas familiares, um bom contacto com a vida real do país, mas foi experiência toca e foge.

Fernando Medina. Nos governos desde Guterres, com passagem pela Câmara de Lisboa. Antes trabalhou em ministérios. Uma carreira inteiramente pública.

Mariana Vieira da Silva. Entrou para os gabinetes ministeriais em 2005 (27 anos), depois de ter sido investigadora uns poucos anos.

Marina Gonçalves. Teve dois exíguos anos de experiência como advogada, em part-time enquanto já assessora do grupo parlamentar do PS - segundo se entende da nota curricular do Governo. Depois disso, só gabinetes de Governo e Parlamento.

Vêem o padrão, certo? Políticos sem nenhuma experiência do mundo real. Nem qualquer contacto, ou muito rápido, com o mundo privado - aquele sobre o qual decidem mas que desconhecem inteiramente. Formados desde sempre nas tricas partidárias, onde se sobe por acertar nas lealdades certas, não por competência. Não sabem o que são as restrições de tesouraria das PME. Desconhecem as aflições do trabalho social ou associativo, onde se ajudam efetivamente as pessoas sujando as mãos, longe do glamour dos gabinetes ministeriais. As equipas que gerem são de políticos wannabe, usualmente da mesma fação, sem competição ou contestação criativa.

Não há avaliação de desempenho: os resultados das políticas na vida das pessoas não contam. A avaliação é feita consoante se se contribuiu, ou não, para o sucesso político do patrono ou para a manutenção ou ganho do poder. Acederam demasiado cedo a cargos muito bem remunerados para a média nacional, desconhecendo por completo a vivência dos seus contemporâneos de empregos precários e mal pagos atrás uns dos outros, ou imigração, mesmo depois de um curso superior.

Com políticos e governantes que vivem e viveram numa bolha totalmente fora da realidade das pessoas para quem legislam e governam - realidade que lhes é tão estranha como a atmosfera de Marte -, como podemos ter boas políticas ou gestão competente dos ministérios? Como é óbvio, não podemos. Temos pessoas a decidir e governar sobre matérias e setores de que são ignorantes. E, não, ler dossiers e ouvir este e aquele não dá o conhecimento do terreno desejável para decidir bem. Sobretudo, não dá a experiência dos sobressaltos da vida real.

Os vários casos TAP, além das muitas consequências políticas que terão de ter, mostram que o atual perfil de políticos que proliferam no Governo, nas câmaras, no Parlamento e nos partidos é tóxico.

Não trago solução de fórmulas, mas pelo menos para as listas de deputados e para os cargos de secretário de Estado ou ministro deveria existir uma exigência mínima de experiência profissional fora do ambiente público. Ou uma exigência militante dos media e dos cidadãos de uma mistura pelo menos metade-metade, na Assembleia da República e no Governo, entre pessoas que viveram no mundo real e políticos profissionais. Também não me deleito com o extremo oposto: um governo ou um grupo parlamentar de tecnocratas - que tendem a ser politicamente pouco hábeis. (E quem faz percurso nos partidos detesta-os acidamente). Talvez na mistura esteja o sucesso.

Claro, mudar o dito perfil - para políticos que, enfim, saibam da vida - requer que se aumente decentemente os ordenados de deputados e membros do Governo. E se revejam leis de incompatibilidades. Se queremos profissionais experientes de fora, não lhes podemos exigir que, saindo da política, se dediquem aos bordados (ou a facilitar acesso), a invés de trabalharem no que sabem.

Um ponto é certo: o atual perfil dos políticos não serve. Precisamos de outro.»

Sem comentários: