segunda-feira, 3 de outubro de 2022

Brasil: as feridas continuam abertas

Com a devida vénia, eis o oportuno e muito realista editorial do jornal "Público" de hoje, da responsabilidade de Manuel Carvalho,

«A incerteza dos resultados eleitorais no Brasil quando estavam contados 50% dos votos é um primeiro indício de que as feridas abertas no país com a corrupção revelada pela Lava Jato, pelo afastamento de Dilma Rousseff do poder e pelo sinistro mandato de Jair Bolsonaro, estão longe de estar curadas. A polarização agressiva que divide o Brasil, e que se manifesta com a concentração de votos nos dois principais candidatos, está para durar. Lula continua a ser o principal candidato à vitória na primeira volta (todos os indicadores o provam à hora em que este editorial se escreveu), mas a resistência de Bolsonaro vai legitimar o seu discurso golpista e adensar a nuvem de incerteza que paira sobre o Brasil.

Ganhe quem ganhar, a expressão da vitória parece, a esta hora, ser de tal forma nublada que não permite uma clarificação definitiva. Mesmo que Bolsonaro exiba as suas fragilidades políticas ao aparecer na condição de primeiro Presidente a falhar a reeleição, ele mobiliza uma parte tão significativa dos brasileiros que deixará Lula refém das suspeitas de corrupção que atormentam a sua biografia política. Mesmo que Lula ganhe, o bolsonarismo e o seu programa de agressão à independência judicial, à liberdade de imprensa, aos direitos básicos das minorias ou à protecção de valores universais como os do ambiente permanecerão vivos.

Poucos esperariam uma eleição assim tão renhida. Não apenas pelos resultados globais das sondagens, que davam a Lula da Silva uma margem para uma vitória à primeira volta, mas também pelas leituras mais finas que assinalavam o desconforto com a impreparação e incompetência de Bolsonaro, a sua falta de decoro, a sua culpa na mortalidade da pandemia ou a sua rejeição da ordem constitucional. Lula não se impôs de forma clara a Bolsonaro (mostram os resultados ainda incompletos) porque foi vulnerável aos seus ataques.

O que esta polarização agressiva, quase doentia, prova é um fracasso da democracia brasileira. O país que tem na sua história democrática personalidades como Tancredo Neves, Ulysses Guimarães ou Fernando Henrique Cardoso não foi capaz de promover uma terceira via para desfazer o nó atado pelos extremos da esquerda e da direita brasileira. Jair Bolsonaro resiste, apesar de não passar de um político de caserna, boçal e impreparado, porque conseguiu colar Lula à corrupção. A herança dos abusos do PT jamais o recomendaria para o cargo.

Com a segunda volta à vista, com Bolsonaro levantado do tapete, com um Congresso reforçado com os seus legionários, adivinha-se uma campanha ainda mais azeda e um futuro ainda mais incerto. A democracia do Brasil mergulhou demasiado no pântano para se erguer de um momento para o outro.»

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