O artigo de opinião de José Manuel Amarante, ex-director da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e ex-director do Serviço de CPRE no Hospital de São João, publicado no jornal "Público" de ontem. Com a devida vénia,
«Neste tempo de férias, continua exaustivamente, a falar-se da falta de médicos no Serviço Nacional de Saúde (SNS) e no encerramento errático de maternidades.
Relativamente a esta última questão, a solução até será simples de resolver, bastaria concentrar os obstetras em urgências de hospitais geograficamente bem colocados, à semelhança do que se vem fazendo com várias outras especialidades – urgência metropolitana –, e o assunto rapidamente ficaria sanado. Porém, o problema do SNS é bem mais profundo.
No começo do SNS, os médicos que o ajudaram a implementar, se no final do curso optassem por uma especialidade, obrigatoriamente tinham que cumprir o chamado serviço médico à periferia (um ano de serviço em regiões isoladas do interior do país, para aí colmatar a falta de profissionais). E, na maioria das especialidades, em particular as que, entretanto, se foram autonomizando, os jovens internos voluntariavam-se para fazer urgências, pro bono, não para colmatar a falta que havia de especialistas, mas sobretudo para melhorarem a sua formação.
Progressivamente foram-se desvalorizando os cargos de direção do SNS. As administrações hospitalares deixaram de escolher os médicos mais graduados e competentes, fazendo tábua rasa das carreiras passaram a nomear os amigos e confrades, a maioria tecnicamente mal preparados, burocratas facilmente controláveis por quem os escolhe, seguindo aliás, os mesmos padrões da nomeação das administrações: confiança política.
Dirigentes destes gozam de escasso prestígio entre os pares, pelo que surpreende que a sra. ministra da Saúde lhes telefonasse tentando resolver o problema das escalas de urgência. Na maioria dos casos, deixaram de ser líderes que os colegas ouvem e seguem.
Os concursos públicos para outorgar o título cimeiro da carreira hospitalar (assistente hospitalar sénior, o antigo chefe de serviço), outrora muito exigentes, praticamente desapareceram e, quando abertos, as administrações fazem-no em momentos estratégicos e de forma enviesada, para que, sem qualquer despudor, possam recrutar os que querem.
Vai longe o tempo em que, por lei – penso ainda em vigor –, nos Hospitais Universitários, em igualdade na categoria da carreira hospitalar, era nomeado diretor de serviço o doutorado mais graduado.
Ainda há poucos anos ser diretor de serviço significava ter competência e qualidade, o que evidentemente se repercutia na atividade privada individual. Ganhava-se mal no setor público, mas compensava-se com a atividade privada, beneficiando do prestígio granjeado no hospital público – que era necessário continuar a manter –, ficando assim a ganhar o SNS e os profissionais.
Com a proliferação dos hospitais privados, o prestígio profissional deixou de ser socialmente relevante, sendo hoje mais importante a facilidade de agendamento – no dia e na hora que o doente quer –, do que a qualidade e a experiência de quem faz a consulta, assumindo-se que todos os médicos são igualmente competentes.
O facto é que a carreira no SNS deixou de ser atraente. As esperadas contrapartidas – do trabalho árduo e empenhado, apesar de mal pago –, tais como a aprendizagem contínua, a diferenciação, a progressão na carreira, o reconhecimento do mérito ou o prestígio profissional com repercussão na atividade privada, acabaram.
Advinham-se as consequências na evolução da medicina nacional.
Entretanto, os governos foram cedendo a interesses corporativos, pactuando com situações gravosas para o SNS, que terão que ser rapidamente retificados. A título de exemplo: fará hoje algum sentido que para se ser médico de família seja obrigatório ter a especialidade de Medicina Geral e Familiar? Não será suficiente o curso de Medicina – seis anos, sendo que o último, após o acordo de Bolonha, é já profissionalizante –, seguido de um ano de estágio? Não admira que faltem mais de um milhão de médicos de família, o que poderia ser, na maioria dos casos, rapidamente colmatado com médicos generalistas, após terminarem o estágio, dispensando quatro anos de especialização. Não há muito tempo recrutaram-se centenas de médicos generalistas da América Latina. Porque não contratar os nacionais?
Justificar-se-á um anestesista por cada sala operatória em blocos com várias salas contíguas, contrariamente à grande maioria dos países? Se entre nós, incompreensivelmente, não existe esta especialidade de enfermagem, há, no entanto, profissionais muito experientes, a trabalhar há anos e em exclusivo nessas áreas, que adquiriram uma notável diferenciação.
E face à atual crise na obstetrícia, que papel têm tido as enfermeiras parteiras, de quem muito pouco se tem falado?
Contribuindo também para a agonia do SNS, está a manutenção pelos governos da aberrante situação de médicos formados em escolas públicas, com propinas irrisórias, que adquirem a especialidade no SNS – remunerados durante os cinco ou seis anos de formação –, possam partir para o setor privado no dia a seguir a terminarem a especialização, sem que haja qualquer compensação para o SNS.
As condições de acesso à formação especializada no SNS são definidas pelo Governo que deveria obrigar quem estiver interessado, não só a submissão ao exame de seriação, como agora, mas a outras condições, nomeadamente a obrigatoriedade de exercer um ano em locais com falta de médicos de família, à semelhança do serviço médico à periferia que tantos médicos recordam como um marco altamente positivo da sua vida clínica, e ainda a obrigatoriedade de trabalhar no SNS pelo menos o mesmo número de anos necessários à obtenção da especialidade.
Aos especialistas, previamente informados destas regras, se no final ou nos anos seguintes à conclusão da especialidade optassem por abandonar o SNS, seria cobrado – a eles ou à instituição privada para onde transitassem – o custo da formação, tal como os médicos e pilotos que se desvinculam da Força Aérea.
Até no futebol os clubes onde os jogadores fizeram a formação são hoje ressarcidos aquando das transferências!
E, uma vez que os hospitais privados vieram para ficar, seria de impor uma moratória, finda a qual seriam obrigados ao recrutamento dos seus médicos em escolas não estatais (que urge que o Governo autorize) ou no estrangeiro e serem responsáveis pela formação dos seus especialistas, nos próprios hospitais. Esta medida drástica, mas simples, se implementada, ilustraria a independência de lobbies e poria fim a privilégios e monopólios. É claro que haverá sempre quem corporativamente venha afirmar a inexistência de condições para a formação médica em ambiente privado, como se o setor privado andasse distraído ou fosse incompetente.
De uma forma ou de outra, se o Governo quiser evitar mais estragos no SNS, porventura irreparáveis, forçosamente terá que assumir rapidamente ruturas com lobbies e tomar decisões percetíveis para todos.»
Comentário
"fará hoje algum sentido que para se ser médico de família seja obrigatório ter a especialidade de Medicina Geral e Familiar?"
Claro que faz todo o sentido, senhor professor. As exigências de uma boa prática clínica em Medicina Geral e Familiar impõem-na. A complexidade dessa prática tem aumentado e continua a aumentar. A resposta requerida impõe graus de conhecimento que correspondam à exigência da avaliação e da resolução dos múltiplos e diversificados problemas clínicos que surgem diariamente aos médicos de família. Só assim eles terão possibilidade de adquirir a capacidade de, como é sabido, gerir e resolver adequadamente mais de 90% dos casos que, de outro modo, iriam parar aos hospitais.
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