sexta-feira, 10 de março de 2017

O anúncio que hoje faz 100 anos e o milagre de Fátima

Com o título "O anúncio que hoje faz 100 anos e ainda não me convenceu a admitir o milagre de Fátima", a crónica de opinião de Ferreira Fernandes publicada hoje no jornal "Diário de Notícias". Com a habitual vénia:

«Confesso, tivesse eu parado naquela velha página de anúncios do DN e olharia para outro lado. O meu companheiro de redação João Céu e Silva debruçou-se sobre um pequeno anúncio de título cabalístico - e fez a manchete para esta edição. O jornal em que o anúncio foi publicado, a 10 de março de 1917 (faz hoje cem anos), estava a várias semanas do que viria ser o célebre 13 de maio. Porém, anunciava algo que podemos agora relacionar com Fátima e as aparições. Admito que é estranho.


Mas, como vos dizia, com aquela página 4 do DN eu não teria ido por aí. Desde o Almanaque do Porto e do Almanaque Bertrand, coisas de infância, gosto de repositórios de saberes gerais - e poucas coisas entendem disso mais do que os pequenos anúncios de jornais. Era a época, e anunciava-se batata para semente "de qualidade francesa", a melhor. É um saber de que talvez nunca me servirei, mas gosto de lhe deitar um olhar. "Criada" (nas várias versões podia ser também "rapariga", "mulher" e até "senhora", para cuidar de acamado) era o principal grupo profissional anunciante. Estavam na secção "Oferecem-se", um reflexivo que, apesar do texto seco, fazia adivinhar um grito agónico em cada anúncio.

Lá fora era a Grande Guerra e o nosso corpo expedicionário tinha acabado de partir para a Flandres. Nos anúncios, que também se leem entre linhas, isso via-se pela escassez e pouco relevo das viagens marítimas. Antes de 1914 emigrava-se até para o Havai (nesse tempo um dos principais destinos) e a carga e os passageiros eram requestados em grandes anúncios de quarto de página.

Em março de 1917, três raquíticos anúncios (cada um só o dobro de um de criada oferecendo-se para todo o serviço) de companhias com vapores. Um acenava-nos com um paquete para o último paraíso na Terra, a América Latina ("Para a Bahia, Rio de Janeiro, Santos, Montevideo e Buenos Aires"). Mas as guerras, e aquela já o fora, se são momentos de grandes deslocações de populações empurradas, raramente o são para viagens voluntárias, mesmo que de emigrantes.

Um outro anúncio era também sobre um drama, mas suspeito de que a maioria dos leitores do DN tivesse sentido compaixão pela vítima. Título "Venda de bens móveis de um súbdito inimigo." Pequeno anúncio sobre um inimigo, era uma primeira vez para mim. No domingo 11, iam ser vendidos judicialmente mobiliário, livros e artigos de lavoura na Quinta de São Sebastião, à entrada da vila de Almada. E, no domingo seguinte, "seis magníficas propriedades, assim como livraria e quadros", também em Almada.

A espoliada (o termo não vem no anúncio) era a "alemã Sofia Sieslick". A guerra de trincheiras entre os dois países levara à prisão e deportação, para a ilha Terceira, dos alemães. Portuguesas que haviam deixado de o ser com o casamento com alemães ficavam, por vezes, na terra de ninguém da nacionalidade e, pelos vistos, também sem terras e haveres. Os anúncios têm destas coisas, e esse de há cem anos leva-me a este: "Que foi feito de ti, Sofia, que colecionavas livros e quadros em Almada e ficaste sem nada?"

Era sobre isso que eu, ao contrário do João Céu e Silva, leria nesta página fantástica de pequenos anúncios. Mas, tenho de o admitir, talvez esteja a fugir ao espanto. Que raio é aquele número "135917", tão data extraordinária (13/05/1917), encimando o anúncio que nos interpela: "Não esqueças o dia feliz em que findará o nosso martírio. A guerra que nos fazem terminará"... Leiam, nas duas páginas desta edição, que esse anúncio-aviso foi feito por uma sociedade espírita e, com teor semelhante, foi repetido em mais três jornais, entre os quais o JN.

O número é cabalístico, dá para interpretações difusas e talvez seja tudo só uma coincidência. Um exemplar do DN, não fotocópia, confirmou-me (é uma das vantagens de trabalhar neste secular jornal) que houve mesmo aquele anúncio, naquela velha página de papel amarelecido. Mas não foi feito o teste de Carbono 14, que garanta que aquele bocadinho de papel do tamanho de uma unha não tenha sido reimpresso pelos serviços do Vaticano, nos anos 1940, ou mais recentemente pelo Edward Snowden, a mando do Putin, que tem destas manias...

Até lá, pois, mantenho-me incrédulo. As coincidências, afinal, às vezes não significam nada, só acontecem. Basta andarmos atentos a elas, por isto ou por aquilo, para nos fartarmos de as encontrar. A minha mãe andou no Colégio de Odivelas e teve o n.º 217. Eu andei no Colégio Brotero, no Porto, e calhou-me o n.º 217. Não queiram saber as vezes que nos hotéis me acontece o quarto 217. Afinal, muitos hotéis têm dois andares e, pelo menos, 17 quartos por andar.

Simples coincidência, pois, o caso do anúncio de 10 de março de 1917, no DN. Ainda não estou pronto para fazer um vídeo rendido a Fátima, como Zita Seabra.»

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