sexta-feira, 25 de novembro de 2016

A prescrição médica já não é o que era

Com a devida vénia, transcreve-se o artigo de opinião de Rita Roque de Pinho, Consultora da sociedade de advogados pbbr.a, intitulado "O poder da prescrição já não é o que era", publicado no "Jornal de Negócios" do dia 24 de Novembro:

«O poder de escolha de um medicamento sujeito a receita médica a utilizar por um determinado paciente assenta em larga medida nos atos de prescrição e dispensa. Por esse motivo não surpreende que as medidas orientadas para a racionalização do uso de medicamentos que têm sido adoptadas (em justaposição com a necessidade de reduzir despesas em saúde), passem sistematicamente pela alteração das regras de prescrição e dispensa de medicamentos.

Com efeito entre 2011 e 2012, assistimos a uma verdadeira reforma da política do medicamento com a introdução de diversas medidas, de que se destaca a prescrição por denominação comum internacional ("DCI") da substância ativa do medicamento e a introdução da prescrição eletrónica.

Esta reforma veio condicionar de modo marcante o poder que era conferido aos médicos na escolha do medicamento a tomar pelo seu paciente, poder este de que o médico obviamente dispõe através da prescrição. Como regra, a margem de decisão que é conferida aos médicos a este nível passou, da escolha do medicamento A ou B, para a escolha do conjunto dos medicamentos que contém a "substância ativa" x ou y. E dentro do espectro de medicamentos identificados através da DCI, entram as regras de dispensa dirigidas aos farmacêuticos orientadas para a escolha dos medicamentos mais baratos, entre aqueles que são elegíveis de acordo com a prescrição feita pelo médico.

Em complemento foi também introduzida a prescrição eletrónica, o que passou a permitir a monitorização e o tratamento da informação constante dos atos de prescrição e dispensa de medicamentos, de forma global. Desta forma criaram-se mecanismos de controlo automatizado do ciclo prescrição, dispensa e conferência de receitas, que se tem revelado uma ferramenta decisiva para a deteção de fraudes ao SNS cometidas através da prescrição de medicamentos.

Sendo este em termos sumários o modelo que temos desde 2012, foram recentemente aprovadas novas regras de prescrição e dispensa de medicamentos através da Portaria nº. 284-A/2016 de 4 de Novembro. As alterações introduzidas reforçam os condicionamentos existentes a nível da prescrição e dispensa de medicamentos e produtos de saúde, aprofundando a obrigatoriedade de processos de desmaterialização do ato de prescrição.

Através da mencionada Portaria, é estabelecida como regra a desmaterialização total da prescrição de medicamentos e produtos de saúde a partir de 1 de Janeiro de 2017. Isto significa que a receita não é impressa em papel, sendo acessível por meios electrónicos. Com a prescrição desmaterializada é facultado um guia de tratamento ao utente por meios electrónicos, i.e. através de correio electrónico, SMS ou da aplicação MySNS, o qual contém um número de prescrição e um conjunto de dados que permitem a sua identificação. A dispensa dos medicamentos faz-se nas farmácias, tendo os farmacêuticos acesso à prescrição através da apresentação do cartão de utente, ou do número de prescrição.

Adicionalmente, a referida Portaria veio estabelecer novas restrições quanto ao número de embalagens de medicamentos ou produtos de saúde que podem ser prescritos pelos médicos em cada ato de prescrição, e subsequentemente dispensados aos utentes.

Note-se também que para além destas regras foi também anunciado na Estratégia do Medicamento e Produtos de Saúde 2016-2020, a aprovação de um conjunto de medidas orientadas para a prescrição em primeira linha de medicamentos biossimiliares (i.e. os genéricos dos medicamentos biológicos), e da melhoria da prescrição no sentido da melhor utilização dos recursos do SNS. Estas medidas passam nomeadamente pela revisão de normas de orientação clínica que são elaboradas pela Direção Geral de Saúde em articulação com a Ordem dos Médicos, bem como pelo reforço do papel das comissões de farmácia e terapêutica dos hospitais no que diz respeito aos medicamentos de uso hospitalar.

Todas estas medidas têm como objetivo promover o uso racional do medicamento e produtos de saúde, o qual é prosseguido através da criação de regras em matéria de prescrição que, por um lado, impõem condicionamentos aos médicos no sentido de prescrever produtos mais baratos, e por outro, quanto à forma de prescrição, criando mecanismos que possibilitam uma monitorização mais eficaz do cumprimento das regras por parte das autoridades de saúde.

Nesse sentido, temos vindo a assistir a uma progressiva limitação do poder dos médicos no exercício do ato de prescrição, e as medidas anunciadas pelo Governo apontam para o reforço dos condicionamentos existentes a este nível.»

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