segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Em nome da fé?

«A propósito dos acontecimentos de Paris, aparece um pouco por todo o lado a pergunta "em nome de quê?". E depois acrescenta-se, como faz o Público: "A pergunta que não tem resposta." Tem resposta, tem. Infelizmente não é a resposta que gostaríamos de dar, mas se não compreendemos a resposta, não conseguiremos nós próprios defrontar estes actos de terrorismo político. E a resposta é a fé, uma certa forma de fé, podemos achar que é uma forma transviada, perversa da fé, mas é uma crença profunda numa ideia religiosa que, como acontece em muitas religiões, se estende para uma ideia dos costumes, da sociedade e da política. É uma ideia "civilizacional", não da que nós temos hoje no chamado Ocidente, mas da que se tem numa parte cada vez mais importante do Islão e que afecta (e infecta) indivíduos, grupos, povos, proto-estados e estados. Aqueles que menos "infectados" estão, os palestinianos e os curdos, por exemplo, são por nós deixados sem defesa.

É a morte desejada, procurada, nos autores e nas vítimas, que mostra em primeiro lugar que estamos perante uma fé. Muita gente se arrepia quando se fala de fé, porque "Deus é bom", as religiões são puras na sua dedicação ao transcendente, etc. E contrapõe-se que estes terroristas – nome bem aplicado neste caso, visto que usam o terror para implementar os seus objectivos – nada têm a ver com a religião, nem com o Islão. Parece-me sempre a argumentação que se usava para dizer que os países do "socialismo real" nada tinham a ver com o "socialismo".

E não adianta vir dizer que o terrorismo tem acima de tudo um projecto político, que tem, e que é por ele que devemos começar a análise. E, não adianta, porque esta forma de fé é política, ao ser globalizante, absoluta, total, logo civilizacional e desse ponto de vista "construtora" e "destrutora". Mas nem por isso deixa de ser fé, o que significa que temos também um problema que é eminentemente religioso, e cuja resolução ou é interior ao próprio Islão, como a "reforma" o foi ao cristianismo romano, ou então permanecerá endémico. A política já matou muita gente, a raça e a nação também, mas é muito provável que, na história humana, a religião tenha matado muito mais.
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Há muitos motivos de ordem socioeconómica que explicam o desenraizamento de muitos jovens muçulmanos nas capitais europeias e os tornam carne para canhão do ISIS. E admito que se a Europa tivesse uma capacidade de melting pot vagamente próxima da dos EUA, talvez o recrutamento fosse mais difícil. Mas essa explicação não pode ser a primeira exactamente porque este Islão fundamentalista é uma fé com expressão societal, e nalguns casos estatal. Ele é antagónico com as sociedades, como a ocidental, que representam a maior ameaça para o seu modo de vida. A separação da Igreja do Estado é-lhes impensável, a liberdade das mulheres e a sua condição é-lhes ofensiva – a eles que pensam as mulheres como propriedade dos homens da família –, a laicização das sociedades, entendem-nas como uma permanente blasfémia e a blasfémia é um crime maior na sharia, infiéis com botas cardadas a pisar solo saudita, ou iraquiano, ou afegão, é uma declaração de guerra, judeus com um estado em terras que foram muçulmanas, motivo de uma outra cruzada para os deitar ao mar. Não vai ser fácil.»

(Excerto do artigo de opinião de José Pacheco Pereira, intitulado "Paris: em nome de quê?", publicado na revista "Sábado" de 2015.11.19)

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