quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Risco de Ébola em Portugal é alto, de acordo com parecer do Colégio da Especialidade de Saúde Pública da Ordem dos Médicos

"O risco teórico de virmos a ter casos de ébola é alto", admite José Manuel Silva, bastonário da Ordem dos Médicos. Esta organização afirma mesmo que Portugal é um dos países europeus que está mais em risco devido às relações privilegiadas que mantém com vários países do continente africano, nomeadamente a Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Moçambique que, apesar de não terem ainda registado nenhum caso, fazem fronteira com países de alto risco e possuem "sistemas de saúde frágeis".

Eis alguns excertos do Parecer Ébola-Outubro2014 do Colégio da Especialidade de Saúde Pública da Ordem dos Médicos:

«Está Portugal preparado para lidar com a possibilidade de importação de casos de ébola?
A resposta, como para outros países, é Não.
 .../...
O que será lógico esperar – como qualquer epidemiologista experimentado ou qualquer médico de saúde pública sensato sabe desde os tempos do Professor Ricardo Jorge* – é que o tal caso de ébola não vai chegar com uma bandeirinha a assinalá-lo ao aeroporto da Portela, onde logo chegará uma ambulância do INEM, que o levará sem demora ao Curry Cabral, onde espera por ele um quarto isolado e apetrechado. O que a realidade nos tem demonstrado (designadamente nos casos ocidentais desta epidemia, mas antes disso na história de qualquer surto ou epidemia) é que um (ou mais) caso infectado chegará silenciosamente ao aeroporto num voo fora de horas, em perfeito estado aparente, onde, depois de apanhar o metro para Sete Rios ou para Santa Apolónia, tomará um comboio ou uma camioneta para Bragança, onde um carro cheio de familiares saudosos o esperará para o levar para Vinhais, onde há um almoço de celebração do regresso dele de África marcado para o dia seguinte e onde estarão presentes cerca de cinquenta pessoas que ele, emocionado, abraçará fortemente. E no dia seguinte ao almoço sentir-se-á, pela primeira vez, febril e com dores articulares, cansado, mas irá pensar que tudo isso é fruto da viagem, das horas mal dormidas, da emoção...

É isto que poderemos esperar na maioria das situações, não com uma realidade que se molda aos manuais ou aos monitores com algoritmos de uma sala de controlo de emergências.

Quem estava em Bragança que vigiasse esta situação? Ninguém, parece, pois se o hospital mais próxima com vocação para isto é o São João, no Porto... E, lá chegado, o suspeito, depois de ter ido ao Centro de Saúde de Vinhais, cujo médico do Atendimento Complementar – um ucraniano contratado a uma empresa de serviços, que mal fala o português – o enviou, em ambulância, que logo depois fará mais três ou quatro transportes de doentes, à urgência do Hospital de Bragança. Chegado ao Porto, dizíamos, foi internado e o aflito colega que o atendeu percebe vagamente – mas deixa o esclarecimento para o Departamento de Saúde Pública da ARS – que há cerca de 30 contactos em Trás-os-Montes com fortes probabilidades de contágio. Mas as camas do hospital de referência preparadas para o efeito são menos de metade disso! E agora? Será que se mandam os sobrantes para Lisboa ou para Coimbra?

Com esta história se pretende chamar a atenção para o modo, confuso e cheio de pontas soltas, como a realidade geralmente se apresenta e enfatizar que a tónica na intervenção centrada apenas em serviços hospitalares é errada e que a sua comunicação nos media, centrada em técnicas médicas de ponta e cuidados milagrosos de assistência, produz na população a tal falsa sensação de segurança já invocada.

É fundamental – num Plano de Contingência Nacional, que já deveria estar feito e ter sido posto à disposição da opinião pública (no seus duplos níveis de opinião pública geral + opinião pública técnica) e, simultaneamente, a ser testado – enquadrar o problema a montante e a jusante dos cuidados de saúde individuais e do indivíduo doente. Para além do mais, porque o ébola não tem tratamento nem vacina, pelo que o que nos resta de mais eficaz é uma fortíssima aposta na prevenção primária e primordial: em primeiro evitar que o problema aconteça (chegue cá) e, depois, mitigar as consequências se ele chegar a acontecer e evitar a propagação.

Sobre isso, não se ouviu ainda uma palavra sobre as intenções dos responsáveis, apesar de termos estruturas de Saúde Pública que cobrem o território nacional nos seus níveis local e regional e profissionais formados para a função, aqui crucial, da vigilância e controlo de surtos. O que está a ser feito a este nível, o que foi já feito, o que se aproveitou de experiências anteriores?

Em 2006/2007, aquando da gripe pandémica, Portugal, através da Direcção-Geral de Saúde e de outros serviços que se lhe associaram, constitui um grupo que criou, implementou e avaliou um Plano Nacional de Contingência para a Pandemia de Gripe. Como se sabe, essa pandemia teve, felizmente, consequências bastante modestas e pouco se ficou a saber até que ponto a intervenção, portuguesa e mundial, contribui para o controlo do problema. De qualquer modo, uma estrutura foi montada, circuitos foram criados de novo e a máquina de enfrentar uma epidemia à escala global ficou oleada. O que é feito desses ensinamentos e até que ponto foi essa equipa, e a sua experiência, recuperada e usado na situação actual? Parece-nos que essa experiência anterior pouparia, na ameaça de crise actual, tempo e dores de cabeça.

Parece-nos, e salvo melhor informação que, até agora, não chegou ao conhecimento do público ou da generalidade dos profissionais de saúde (médicos, enfermeiros, profissionais de laboratório, pessoal administrativo, pessoal auxiliar de apoio a cuidados médicos) nenhuma orientação, integrada e global, que inclua desde uma estratégia nacional para lidar com o problema até à emissão de informação que responda às perguntas e ansiedades do público em geral e dos profissionais de saúde em particular.
»

Sem comentários: