segunda-feira, 8 de maio de 2023

A coroação de Carlos III e esta estranha Inglaterra que eu amo

Com a devida vénia, eis a crónica de opinião de Ana Sá Lopes, publicada ontem no jornal "Público". Dá que pensar...

«A monarquia passou de um sistema político para um entretém simbólico. Carlos III, que ontem foi coroado rei numa cerimónia faustosa, não vai mandar nada e, provavelmente, vai acabar como rei de Inglaterra - com a Escócia, Irlanda do Norte e talvez Gales, de que foi príncipe tantos anos, já fora do reino.

O sistema é obsoleto. Porque é que alguém e a sua família, por razões de nascimento, têm o direito de passar a viver à conta do povo dando contribuições mais ou menos ridículas à sociedade? Por que diabo pode dispor de grandes palácios e terras sem fim, exércitos de servidores, por - na Inglaterra ainda é assim - ter sido ungido por Deus?

A monarquia inglesa enquanto entretenimento é imbatível. Enquanto solução política é obnóxia - mas se é isso que os seus cidadãos desejam, assim seja. Se os britânicos estão dispostos a pagar para sustentar uma fotonovela da vida real, magnífico. Aparentemente, ainda estarão disponíveis para o fazer por alguns anos.

Esta semana, uma professora que dá aulas em Inglaterra dizia-me que deve ser o único país onde um professor catedrático diz que é da “working class”. Classe trabalhadora? Um professor catedrático em Portugal é da classe alta, mas no Reino Unido não. O dinheiro ao dispor da velha aristocracia ainda é muito para que alguém pense que passou - só por ter uma cátedra - ao patamar seguinte.

João Magueijo tem descrições geniais sobre a estratificação social dos ingleses, uma das mais classistas sociedades do mundo. Objectivamente, o sistema monárquico, com toda a sua divisão de propriedade em função do nascimento, é o grande responsável por isso.

Se me diverte a monarquia inglesa? Imenso. Se tem sido um factor de unidade do reino até agora? Sim. Se é a mais evidente prova da desigualdade social? Obviamente.

Mas a Inglaterra que eu amo é a que teve como ministro dos Negócios Estrangeiros Ernest Bevin, que não falava sequer bem o inglês, que começou a trabalhar aos 11 anos, conduziu camiões e depois fundou um sindicato todo-poderoso. Era ele o braço direito de Clement Attlee - esse sim um privilegiado, advogado e filho de advogado, estudante em Oxford, que só passou do conservadorismo para o socialismo quando contactou com a miséria do East End de Londres.

Ernest Bevin, filho de pai incógnito e órfão de mãe desde os dez anos, ocupou nos governos Attlee a residência oficial do ministro dos Negócios Estrangeiros, que ficava ao lado da casa da rainha Mary (avó de Isabel II), que o tratava por “vizinho” e com quem manteve excelentes relações.

A Inglaterra que eu amo deu a um homem que começou a trabalhar aos 12 anos como mineiro em Gales - Aneurin Bevan - o cargo de ministro da Saúde e do Trabalho e a nobre tarefa de fundar o National Health Service.

A Inglaterra que eu amo é a que elegeu James Callaghan primeiro-ministro e que, quando lhe deram a notícia de que tinha vencido as eleições dos trabalhistas, chorou e disse: “E eu que nunca fui à faculdade!”

A Inglaterra que eu amo é onde uma mulher filha de um merceeiro, Margaret Thatcher, conseguiu ser primeira-ministra quando em Portugal nem ministras praticamente havia. As feministas daquele tempo enganaram-se quando gritavam “Margaret Thatcher é um homem” - o feminismo não foi feito para que só as “mulheres boas” ou de quem gostamos tenham o poder.

A Inglaterra que eu amo é aquela em que outro homem que nunca frequentou a universidade conseguiu ser secretário de Estado do Tesouro, ministro dos Negócios Estrangeiros, ministro das Finanças e finalmente primeiro-ministro, substituindo Thatcher - John Major.

Cavaco Silva, Mota Pinto, José Sócrates, Pedro Passos Coelho não vieram da elite lisboeta ou portuense. Mas os restantes primeiros-ministros de Portugal sim. Não temos o sistema classista britânico, mas o recrutamento tem sido feito na bolha que vai da Faculdade de Direito de Lisboa à baía de Cascais.

Não havendo nem rei, nem família real, nem aristocracia, há uma dimensão monárquica muito prejudicial à democracia portuguesa e que é provavelmente responsável por parte do nosso atraso.

A base de recrutamento dos governos em Portugal hoje são as “jotas” e é possível chegar-se a ministro sem se ter passado um único dia na “vida real”. O desaparecimento dos operários, como o eram Bevin e Bevan, dos centros de decisão em Inglaterra (em Portugal nunca estiveram) explica o agravar das desigualdades. Não chega contestar a monarquia, é preciso rebentar a bolha.»

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