domingo, 18 de setembro de 2022

A rainha de Inglaterra vale tanto como um Presidente português

Com a devida vénia, eis o editorial do jornal "Público" de ontem, da autoria de Manuel Carvalho

«O deputado Pedro Filipe Soares, do Bloco, protestou contra a declaração de três dias de luto nacional pela morte da rainha Isabel II. Porque é um gesto “tanto provinciano como pacóvio” e porque não “representa o sentimento popular e republicano”. Desconte-se o exagero da sua pretensão em interpretar o que é o “sentimento” das pessoas e da República, até porque a atenção que a imprensa e as televisões dedicaram às homenagens fúnebres da rainha é, por si só, capaz de mobilizar um apego especial à memória de sua majestade.

Desconte-se também o exagero da adjectivação, porque é normal que uma personalidade que “marcou profundamente a segunda metade do século XX e o primeiro quartel do século XXI”, sendo, ainda por cima, monarca de um país com o qual Portugal tem a mais antiga aliança, mereça uma homenagem nacional. Isto dito, Pedro Filipe Soares teria toda a razão se, em vez de criticar o luto, denunciasse a sua duração.

É neste particular que a designação do acto “provinciano e pacóvio” faz sentido. Porque se é indiscutível que Portugal tem o dever de homenagear a memória de Isabel II, conceder-lhe o mesmo luto que concedeu a Mário Soares ou Jorge Sampaio é uma subversão total da importância que cada um deles teve nos destinos do país. Pior: conceder três dias de luto à rainha e apenas um a Eduardo Lourenço, a Paula Rego ou às vítimas da covid-19 é um gesto que só pode ser explicado pela tentação do Governo em cavalgar a onda emocional que os directos das televisões criaram.

Isabel II, já aqui o escrevemos, foi a “monarca irrepetível”. A sua sensatez e serenidade causam devoção e provocam saudade. A forma como dirigiu o Reino Unido em tempos turbulentos fizeram dela uma personagem de importância indiscutível na História contemporânea. Mas essa relevância não basta. Mikhail Gorbatchov não teve menor importância nos destinos da Europa e do Mundo e não teve direito a qualquer luto nacional. Sendo legítimo que o Governo considere Isabel II uma personalidade mais relevante, não homenagear Gorbatchov e conceder três dias de luto à monarca é incompreensível.

E, mais que incompreensível, é uma opção daninha. Porque, sendo impossível não comparar a dignidade de cada uma das declarações de luto, fica-se com a ideia de que o Portugal muito reverente e subordinado ao estrangeiro outrora continua hoje a ser ingrato para com os seus cidadãos mais ilustres. A igualdade de tratamento entre uma rainha britânica e presidentes que lutaram pela democracia e exerceram os mais altos cargos no serviço público não é apenas um sintoma de provincianismo: é um sinal de desrespeito do país para consigo próprio.»

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