terça-feira, 22 de março de 2022

Unidades de Saúde Familiares: um modelo de eleição

A opinião, publicada hoje no jornal "Público", é de António Correia de Campos.


«Em 2007 foram criadas as primeiras USF. São unidades de seis a dez médicos, dotadas de enfermeiros de família e de pessoal técnico e operacional, livremente organizadas segundo regras pré-estabelecidas, assistindo uma população de cerca de 1800 inscritos por médico de família e enfermeiro. O regime de intersubstituição e de partilha dos processos clínicos impede o vazio de assistência quando qualquer médico ou enfermeiro se encontra doente, em formação, ou em trabalho temporário em outras funções. O doente inscreve-se ou é contactado pela secretária clínica, tem consulta a hora marcada, evitando a aglomerações e a sua saúde e da sua família é gerida por uma equipa que passa a conhecê-lo nas suas limitações, patologias, terapêuticas anteriores e sobretudo se encontra disponível para pelo telefone o atender ou responder ao email e se for necessário consultá-lo em casa.

Com as USF ocorreu uma verdadeira revolução no atendimento em cuidados de primeiro contacto. Os centros de saúde onde existem USF distinguem-se claramente de outros onde elas não estão ainda criadas e mesmo dentro de cada centro, o atendimento difere em relação às antigas unidades. O processo tem patamares de exigência progressiva. Os interessados em criar uma USF exercem dentro dos clássicos centros de saúde, embora estes tenham sido remodelados em unidades de cuidados de saúde de proximidade (UCSP) e candidatam-se a USF-A, onde se organizam de modo cada vez mais personalizado. Quando se sentem maduros solicitam a sua passagem a USF-B. Este modelo implica a aceitação de mais 300 utentes por cada médico e enfermeiro, sendo retribuídos pelo vencimento habitual e suplementos por aumento da lista de utentes, atividades específicas – vigilância segundo as boas práticas dos diabéticos, hipertensos, grávidas, crianças no 1.º e 2.º ano de vida e planeamento familiar – e ainda por alargamento de horário, carteiras adicionais de serviço, domicílios, funções de orientação de internos e de coordenação. São avaliados por uma bateria de indicadores de desempenho não apenas pessoal, mas também institucional e pela satisfação dos utentes.

A retribuição nas USF-B é notoriamente superior à das USF-A e à das UCSP, o que estimula as equipas a organizarem-se para concorrerem ao modelo preferido. Em fins de 2021 existiam 294 USF modelo B, 304 de modelo A e 323 de modelo UCSP. As “B” apesar de serem em menor número cobriam 37% dos doentes inscritos, as “A” 29% e as UCSP 34% do total de doentes inscritos em cuidados primários (10,7 milhões de portugueses). A maior parte dos utentes inscritos sem médico de família (1,06 milhões no final de 2021) estava associada às UCSP (82%), sendo 12% os associados às “A” e apenas 6% os associados às “B”. Se toda a população ainda não coberta pelo modelo “B” fosse por este abrangida, teríamos mais 640 mil utentes com médico de família, melhores indicadores de desempenho e bastante mais ganhos em saúde. Além de uma redução anual de gastos no SNS de 117 milhões de euros, apesar do aumento inicial em recursos humanos.

O modelo USF-B, embora ao fim de 15 anos careça de correções, tornou-se um modelo de eleição. Na avaliação que a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) realizou recentemente, incluindo os consumos e custos médios anuais por utente padrão, em internamento subsequente, idas ao serviço de urgência, meios de diagnóstico e medicamentos, além de claras diferenças de qualidade, há um gradiente de custos: as convencionais, UCSP, custam mais 63 euros que as USF-B e estas, curiosamente um pouco mais (7 euros) que as USF-A. O processo de candidaturas revelou-se um incentivo ao aprimoramento do desempenho, a ponto de os custos observados nas USF-A que aspiram a ser USF-B serem ligeiramente inferiores aos das USF-B estabilizadas.

Uma vez que a criação de USF-B implica mais dispêndio inicial em número de efetivos e sua retribuição, é natural que o processo de aprovação suscite relutância entre os decisores da Saúde e das Finanças. O caráter errático das criações nos últimos seis anos revela relutâncias, inconstâncias e violações de programas que são confundidas com ausência de uma política pública no setor, com grave perda de capital político. Em boa parte devida a falta de autonomia decisória da Saúde em matéria de despesa, o que demora a decisão na admissão de novos RH, não-sincronizada com a oferta disponível, avolumando saídas para emigração e oferecendo ao privado os profissionais mais qualificados. A frustração dos candidatos com a espera tem efeitos no médio prazo, simétricos pela negativa, dos estímulos à adesão de médicos e enfermeiros de família. Incertezas sobre o futuro diluem entusiasmos e afastam candidaturas.

Tendo em conta o sempre mais rápido crescimento da despesa nos hospitais do SNS, o modelo homólogo, os centros de responsabilidade integrado (CRI), utilizando princípios análogos aos das USF, está a ser cada vez mais utilizado na gestão intermédia dos hospitais, financiado pela poupança resultante da internalização de atos que, por ineficiência ou incapacidade interna, são hoje enviados pelos hospitais públicos para prestadores privados. Há muito caminho a percorrer.»

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