Com a devida vénia, eis o artigo de opinião de Miguel Esteves Cardoso, publicado hoje no jornal "Público",
«Estávamos a pôr a louça na máquina - a raspar para o lixo e a passar por água - quando a nossa convidada começou a gozar connosco.
Voltámos para a sala para tomar café, na esperança de que ela continuasse - e assim foi. Não vou dizer o nome dela, para não a envergonhar, mas é alguém que nos habituámos a ouvir com a máxima atenção possível.
Contou-nos que em casa dela, quando ela era criança, na aldeia das Mercês nos anos 50, o tacho que ia para a mesa e os pratos em que era servido o almoço tinham de voltar limpos para a cozinha.
Isto fazia-se de três maneiras distintas. Em primeiro lugar, o que havia no tacho passava integralmente para os pratos. Não havia travessas. Para quê? Para arrefecer a comida? Para guardar o que sobrasse? Mas não sobrava nada. Nem podia sobrar.
Depois, o que estivesse no prato era para ser comido. Há muitas culturas - a japonesa, por exemplo - em que ainda é assim. Deixar comida no prato era malcriado porque demonstrava falta de respeito pela cozinheira, pelo dinheiro que tinha custado e, mais do que tudo, por Deus nosso senhor num mundo onde tanta gente passa fome.
Mas havia uma terceira máquina de lavar louça: o cão. O cão lambia os pratos todos e assegurava que eles seguiam tão limpos para a cozinha como tinham sido tirados do armário.
Para o caixote de lixo - e para os canos - não ia nada comestível. Os pratos e os tachos eram fáceis de lavar: só faltava, fundamentalmente, remover os vestígios salivares do cão.
Será que a comida era mais deliciosa do que é hoje? Terá sido cozinhada com mais cuidado, sabendo-se que ia ser devorada até à última migalha? Ou terá havido mais fome e menos snacks entre as refeições?
Ou eram, simplesmente - mas nunca simplesmente, está quieto -, outros tempos?»
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