terça-feira, 26 de outubro de 2021

Uma crise inadiável

Com a devida vénia, eis o editorial do jornal "Público", publicado hoje, da autoria do jornalista Manuel Carvalho,

«Aconteça o que acontecer com o Orçamento, a crise está aí e só por hipocrisia ou cinismo se pode acreditar que ela se supera com uma mera mudança táctica no sentido de voto do Bloco ou do PCP. Depois de ano e meio de privações, perante a incerteza sanitária do futuro próximo ou os riscos da conjuntura económica que se agravam a cada dia, a crise nasceu e prosperou, porque o modelo de convivência à esquerda se esgotou. E esgotou-se, porque a esquerda da esquerda constatou que não pode continuar a ser um apêndice do Governo. Quer governar por interposto partido.

As ditas “negociações” do Orçamento foram, já se percebeu, um embuste. Nunca se viu nem um clima de diálogo, nem uma vontade de compromisso. O que esteve em jogo foram choques entre programas ideológicos e políticos irreconciliáveis. As exigências da esquerda da esquerda e as cedências do Governo criaram um mercado que põe em causa os equilíbrios que permitem a coexistência de políticas de esquerda moderada com o modelo económico europeu. Se na origem o Orçamento era mais do mesmo na sua ausência de respostas para o país – um país pobre e incapaz de financiar um Estado social robusto –, o que se seguiu atingiu o limiar do absurdo.

Mais do que negociar, dois partidos que mirraram nas autárquicas e caem nas sondagens querem governar. Apesar de terem em mãos o Orçamento mais à esquerda de sempre, acreditaram ter chegado o momento de disputar o controlo do programa político da governação. O que não conseguiram em eleições seria obtido com a ameaça de uma crise. Estava em causa uma tentativa de esbulho do voto soberano. É por isso que o essencial dos atritos não aconteceu só em matéria orçamental, mas também na sensível área do trabalho. Os portugueses não escolheram esses programas. A democracia encontrará soluções para este clima putrefacto.

Se a crise implicar eleições, que venham. Haverá custos enormes com a instabilidade e o tempo perdido e restará um sentimento de revolta que favorecerá o extremismo. Mas ficar-se-á a saber se os cidadãos querem o reforço eleitoral do Bloco e do PCP, ou se preferem manter os padrões moderados da política europeia, sejam mais à esquerda ou à direita. Dirão se apostam num projecto político realista e sustentável, ou se acreditam nos milagres de uma economia amarrada pelo Estado, com serviços públicos pagos por impostos ou financiados pela dívida.

O que não pode continuar é este clima que tenta subverter a escolha dos eleitores em nome de uma ideologia derrotada nas urnas. Se a intransigência se mantiver, ou se o Governo capitular, é melhor devolver-lhes a palavra.» 

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