A propósito da reportagem exibida recentemente na TVI, da autoria da jornalista Ana Leal, sobre a utilização fraudulenta dos fundos para a reconstrução de Pedrógão Grande, João Miguel Tavares expressa a sua opinião sobre a insólita situação, neste artigo, publicado ontem no jornal "Público", com o título "Pedrógão: uma raiva a nascer-te nos dentes". Aqui fica, com a merecida e devida vénia,
«Quando Sérgio Godinho lançou o seu primeiro álbum, em 1971, escolheu como tema de abertura uma canção chamada Que Força É Essa, que era simultaneamente um grito para tentar despertar uma nação adormecida por 40 anos de ditadura e um canto melancólico sobre um país com um talento desmedido, e incompreensível, para a passividade. No domingo vi com dias de atraso a reportagem de Ana Leal para a TVI sobre a utilização fraudulenta dos fundos para a reconstrução de Pedrógão Grande – chama-se “O Compadrio” e nenhum outro nome seria mais adequado –, e em conjunto com uma sensação do mais profundo nojo e vergonha, só conseguia pensar em Sérgio Godinho e nos versos de Que Força É Essa: “não me digas que nunca sentiste/ uma força a crescer-te nos dedos/ e uma raiva a nascer-te nos dentes/ não me digas que não me compreendes”.
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A raiva de que Godinho falava era uma raiva cívica e moral, que se não vem das entranhas de cada um é porque não está lá. Imaginar que tantas pessoas que há um ano estavam a enfrentar a maior tragédia portuguesa em décadas, e que por isso mesmo motivou um movimento de solidariedade sem precedentes por todo o país, rapidamente transformaram o terrível sofrimento na mais repugnante ganância, é uma profundíssima dor de alma. Tirando os pobres desgraçados sem conhecimentos nem cunhas, alguns dos quais ainda estão à espera de recuperar uma primeira habitação decente, a sensação que temos é que todos os intermediários e respectivos familiares que puderam abocanhar o seu pedaço de generosidade alheia, abocanharam. A excepção não é o corrupto. A excepção é a pessoa honesta.
Naquela reportagem Pedrógão confunde-se com Sodoma. A imoralidade é de tal ordem que o mal parece o bem e o bem parece o mal. Pessoas houve que falaram com Ana Leal como se a fraude fosse não apenas uma inevitabilidade, mas uma obrigação. Diziam: eles mandaram-me preencher os documentos daquela maneira e eu preenchi; eles mandaram-me mudar a morada fiscal e eu mudei; eu não queria, foram eles que me obrigaram a roubar em proveito próprio. Uma das pessoas ouvidas explicou o patriótico raciocínio: se o dinheiro é para ir para outro lado, mais vale ficar em Pedrógão. Seja nas mãos do amigo que transformou o palheiro em casa de habitação, seja nas mãos do funcionário que passou a ter uma vivenda onde antes do fogo só havia ruínas, seja no bolso do empreiteiro que cobrou valores absurdos por obras ridículas. Não é roubar. É aproveitar uma oportunidade de negócio.
Se o caro leitor tiver filhos em idade escolar, por favor, mostre-lhes aquela reportagem. É o que eu pretendo fazer. Se um cidadão vir aquilo e não sentir de imediato a tal “raiva a nascer nos dentes”, alguma coisa de errado se está a passar. Se um primeiro-ministro vê aquilo e não sente necessidade imperativa de agir, então não está a fazer nada em São Bento. Se um presidente da câmara é confrontado com tantas denúncias sem dar uma única justificação de jeito, optando antes por processar Ana Leal e a TVI – como Valdemar Alves ameaçou fazer –, então o seu carácter está definido, para sempre. Ver aquelas imagens pode dar aos nossos filhos vontade de emigrar, que ao longo da História tem sido a solução recorrente para quem já não suporta o país. Mas, ainda assim, há que arriscar e lembrar e insistir e repetir, com este exemplo infame, o bê-á-bá da decência e da moralidade, antes que também neles a mais reles fraude passe por manifestação de inteligência.»
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