segunda-feira, 24 de abril de 2017

Fátima nunca existiu

Com a devida vénia, do artigo de opinião com o mesmo título, da autoria de Ascenso Simões, ex-secretário de Estado do Desenvolvimento Rural e das Florestas, publicado hoje no jornal "Público", os seguintes excertos,

.../... «A Santíssima Trindade, em que quero acreditar, porque a fé é o nível superior da razão, não se confrontou, até ao século XIII, com a necessidade de Santos, com a reconfirmação alucinatória de aparições e de invenções. Ou seja, nos primeiros séculos do cristianismo ninguém tentou incorporar oficialmente os deuses pagãos no cristianismo, ninguém fez Santos para assomar militância à relação única com Deus através de Jesus.

Os templos marianos que existem pelo mundo não carecem da invenção das aparições ou das intervenções de Nossa Senhora. Nem Lourdes sustenta as visões de Bernardette Soubirous, nem Santa Maria de Montserrat transportou a Himler, em 1940, a bênção que impediria a 2.ª Guerra Mundial, nem a Virgem de Meritxell voltou ao lugar onde teria sido encontrada por três vezes, nem Nossa Senhora del Pilar apareceu ao apóstolo Santiago. E há, ainda, a leitura da devoção a Maria Santíssima de forma profundamente colonial, com a consagração da natividade da Virgem da Aparecida, através de uma história infantil contada pelos padres José Alves Vilela e João de Morais e Aguiar, no século XVIII, ambos da Companhia de Jesus.

Fátima é um templo mariano. Basta-se com essa consideração. Elevar Maria é mais importante do que a expiação do corpo através de sacrifício pelos joelhos sacrificados em sangue. Fátima é um espaço mágico que não carece de histórias pueris para se afirmar, que se impõe pela necessidade de uma recolha individual perante a interceção de Maria perante Deus.

As aparições, os segredos e, agora, as canonizações, são um atentado à nossa inteligência e à nossa fé. Porque as exposições históricas nos indicam o primarismo dos relatos, porque a existência de um testemunho consagrado por três crianças ignorantes nunca se poderia cumprir. Fátima foi construída, nas suas fundações, num tempo de complementaridade com um regime, era necessária uma narrativa que a fizesse acrescentar medo, obrigações e demissões de cidadania.

Do século XIII até hoje, a criação de Santos teve muitos enquadramentos, razões, até caprichos. O século XIX providenciou o início de uma leitura não empírica da canonização de um ser comum, entendeu conceder à certificação da ciência a salvação de um corpo perante uma sentença final da medicina. A própria medicina nos diz que não há milagre quando não consegue encontrar razões para um resultado não esperado. Porque cada ser humano é diferente e cada corpo e cada alma se cumprem, perante as desesperanças, de forma diversa. Neste mundo não há milagres por apelo a anteriores viventes terrenos e não há, por isso, Santos.

Este ano não se observam 100 anos da primeira aparição de Nossa Senhora aos pastorinhos; não se verifica qualquer cumprimento de aniversário de uma mensagem que alguém inventou; não podia, sequer, transformar-se a visita papal na criação de mais dois lugares na constelação dos Santos. O que hoje se impõe é que Fátima se reinvente, que seja o local de acolhimento perante Deus, que quem continua a seguir uma linha de procura de um ser superior seja levado a uma inteligente opção pela fé.

Francisco, mesmo que a contragosto, vem a Fátima. Faz a sua parte. Não como Bispo de Roma, mas como Chefe de Estado da burocracia vaticanista.»

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