segunda-feira, 6 de abril de 2015

Manuel de Oliveira e a hipocrisia perante a morte dos artistas

«A morte dos artistas é a maior parte das vezes um momento de vergonha para os artistas. Saem trogloditas governamentais a falar do artista. As televisões e rádios organizam um desfile de emplastros a arrotarem sobre o falecido. Criaturas que os caprichos e os negócios colocaram a ministros, deputados, secretários de águas, habituados a tratarem de gasosas, empréstimos ou vendas a pataco desatam a falar de Fernando Pessoa, de Herberto Helder, de Sophia, de Oliveira, com o mesmo desembaraço com que falam dos penteados do Ronaldo, do défice, da dívida e dos benefícios da troika.

O artista falecido está indefeso perante os elogios destes celerados que cantam hossanas ao desemprego e às penhoras de pensões de reforma. Nenhum artista admitiria as críticas artísticas dos ministros e secretários de estado. Todos admitiriam que os políticos dissessem: Foi uma figura da cultura, controversa como deve ser. Honrou-nos com o seu desprezo e a sua dureza.

Haverá chefes de Estado, ou ministros, ou secretários de Estado que, por vida própria anterior às funções políticas, tenham opinião formada sobre a obra dos falecidos e a exprimam com a devida cautela. Mas a maioria não devia calçar botas que não são para as suas pernas.

É óbvio para qualquer cidadão normal que Cavaco Silva (só para falar no mais graduado dos atrevidos) não tem que se pronunciar sobre os filmes de Oliveira ou os poemas de Herberto, que são territórios que ele não frequentou. E não há mal nenhum nisso. O mal é ele e os seus ajudante não o reconhecerem. É parolice. Oliveira foi um cineasta importante e é português. Ótimo. Como espetador eu, que conheço muitos dos seus filmes, do seu cinema, não era e não sou apreciador. Mas se estivesse investido em funções de Estado diria: foi um português que marcou o cinema europeu. Que mereceu o reconhecimento público. Que merece que a sua obra seja vista e apreciada, discutida e criticada. Não me punha a discutir planos, nem a relação da literatura com a imagem… O mesmo para poetas, escritores, atores, pintores, bailarinos, músicos…

O Estado Português não tem de se pronunciar sobre a qualidade artística dos filmes de Oliveira, nem dos poemas de Sofia, ou de Herberto, nem sobre a arte de representar de Solnado, ou a arquitectura de Siza (felizmente vivo), nem emitir opinião a propósito dos romances de Saramago. Do Estado e dos seus agentes espera-se apenas que reconheça: morreu um dos nossos compatriotas que agitou o mundo. Que um hierarca pago e eleito para efeito se aproxime, faça e uma vénia e se retire. Nada mais.»

(Opinião de Carlos Matos Gomes)

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