quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

Cannabis para fins medicinais, uma perspectiva científica

Com a merecida vénia, eis o artigo de opinião, com o mesmo título, de Bruno M. Fonseca, farmacêutico e investigador do UCIBIO-REQUIMTE, Faculdade de Farmácia da Universidade do Porto, publicado ontem no jornal "Público",

«A utilização médica da Cannabis sativa ou dos seus principais componentes ativos, denominados canabinóides, visa tratar ou aliviar determinados sintomas de algumas doenças. A planta Cannabis sativa é quimicamente rica, estando descritos mais de 500 compostos, dos quais cerca de 100 canabinóides, incluindo o tetrahidrocanabinol (THC) e o canabidiol (CBD). Embora as propriedades analgésicas, antieméticas e anticonvulsivantes da Cannabis sativa sejam conhecidas há muitos anos, o estigma das drogas de abuso atrasou a sua investigação. A caracterização dos recetores canabinóides e posterior descoberta de que o nosso organismo produz endocanabinóides representou um marco da investigação na área, permitindo compreender, ainda que parcialmente, os mecanismos subjacentes às propriedades terapêuticas da cannabis. Além disso, abriu as portas a um mundo novo na investigação farmacológica para situações tão díspares como obesidade, doenças neurológicas ou cancro. No entanto, a maioria destas potenciais utilizações baseia-se em ensaios pré-clínicos e, por isso, requerem cuidado na sua interpretação.

Atualmente, os ensaios clínicos suportam a utilização da cannabis, particularmente o THC e o CBD puros, para a dor crónica e para melhorar os sintomas relacionados com a rigidez muscular na esclerose múltipla. Existem também evidências, ainda que moderadas, de que estes canabinóides previnem as náuseas e os vómitos induzidos pela quimioterapia e estimulam o apetite em doentes com HIV. A eficácia e segurança demonstradas permitiram a comercialização, por alguns países, de medicamentos com THC e/ou CDB. Embora controversa, a utilização do CBD na epilepsia revelou-se, também, eficaz como tratamento adjuvante, particularmente na epilepsia infantil refratária aos tratamentos convencionais. Um extrato enriquecido em CBD (Epidiolex®) é alvo de um programa especial de prescrição enquanto aguarda a aprovação pela FDA. A prescrição de medicamentos contendo canabinóides não representa nada de novo, até porque o mercado de medicamentos já inclui outros com potencial efeito aditivo, nomeadamente a morfina e as benzodiazepinas. Acrescentar o THC ou o CBD à farmacopeia não seria por isso uma medida excecional. Aliás, diversos países, inclusive Portugal (Sativex®, aprovado em 2012), já permitem a prescrição de medicamentos contendo canabinóides.


Por outro lado, a utilização da planta Cannabis sativa, para fins medicinais, apresenta desafios próprios, não só porque os ensaios clínicos incidem, na sua maioria, sobre o efeito do THC e/ou CBD puros, o que dificulta a extrapolação para os efeitos de toda a planta, mas também pelas limitações relativas à via de administração e dosagem. A questão é, pois, perceber se estamos na posse de conhecimento científico suficiente que nos permita, com rigor, recomendar a utilização da planta cannabis para fins terapêuticos. De momento, não existem dados científicos suficientes que suportem esta recomendação. Os canabinóides devem, como qualquer outro medicamento, obedecer a critérios rigorosos de qualidade, segurança e eficácia para estarem disponíveis no mercado.

No entanto, alguns países, embora não recomendando a utilização terapêutica da planta cannabis, permitem-na, estabelecendo programas que minimizam algumas das suas limitações. Embora sejam necessários ensaios clínicos mais robustos, existem ensaios que suportam a utilização da planta cannabis e estão descritas vias de administração que reduzem os efeitos nefastos associados ao seu consumo na forma “fumada”. Aliado ao perfil de segurança da cannabis pode justificar-se o estabelecimento de um programa específico, tal como se verifica em outros países, onde doentes em situações clínicas pré-estabelecidas, sob adequado acompanhamento médico, podem aceder a extratos de cannabis, em condições controladas, de forma a garantir a qualidade e teor dos compostos canabinóides.

Assim, embora, do ponto de vista estritamente científico, não existam evidências que suportem a sua recomendação, existem evidências que suportam a permissão, ainda que controlada, do uso da cannabis para fins terapêuticos. A questão fundamental é, pois, saber se a riqueza farmacológica da planta Cannabis sativa justifica um programa excecional que permita o seu uso para fins terapêuticos.»

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