A crónica da autoria de Ricardo Araújo Pereira, publicada na revista "Visão" 1335, de 4 de Outubro de 2018. Com a devida vénia,
«Foi o último caso do meu amigo Holmes. Quando nos bateram à porta, no número 221 B de Baker Street, para nos falarem do furto das armas em Tancos, estávamos longe de imaginar que aquele episódio nos deixaria marcas indeléveis. Holmes estava muito habituado a casos diabolicamente intrincados, mas era a primeira vez que se deparava com uma fantochada ridícula. Tudo começou quando um jornalista português nos pediu ajuda para deslindar um crime: armas tinham sido roubadas de um paiol do exército. Holmes nem pestanejou:
– Inside job – disse. – Foi alguém de dentro. Os paióis militares têm alta segurança que nenhum civil seria capaz de contornar.
– Isso é verdade na maior parte dos países – observou o jornalista. – Mas em Portugal é tudo um bocado à balda.
– À balda… – repetiu Holmes.
Ficou preocupado. O problema apresentava elementos de fantochada ridícula, o único tipo de caso que a sua argúcia extraordinariamente racional não era capaz de resolver.
– Repare que o exército nem foi capaz de dizer ao certo quantas armas tinham desaparecido – disse o jornalista.
– Hum… Só falta dizerem que nem sequer têm a certeza de que existiu um roubo – escarneceu Holmes.
– Foi o que disse o ministro.
Holmes ficou branco. Fizera uma piada parva e afinal a sua conjectura absurda era realidade. Naquele momento, ficara sem dúvidas: estava perante uma fantochada ridícula.
– Watson, isto é uma fantochada ridícula. Vá buscar o meu ópio, por favor.
– Mas Holmes…
– Tenha paciência, meu amigo. Já sabe que só consigo compreender estes casos portugueses se estiver drogado. E mesmo assim é difícil. Ainda não consegui perceber o processo da transferência do Infarmed para o Porto.
– Afinal o Infarmed já não vai para o Porto – informou o jornalista.
– Rápido, Watson, o ópio.
Assim que a droga fez efeito, Holmes começou a delirar e a dizer coisas sem nexo. E aí, sim, começou a acertar no que se passava em Portugal.
– Se calhar o furto foi um favor que os ladrões fizeram, porque as armas não prestavam.
– Sim, isso foi dito.
– Mais ópio, Watson. Entretanto, como as armas eram sucata, os ladrões devolveram-nas.
– Exactamente!
O jornalista estava impressionado.
– Mas devolveram armas a mais.
– Sim! – disse o jornalista. – Mas depois afinal descobriu-se que devolveram a menos.
– Raios! Mais ópio, Watson! O ladrão foi ajudado pela polícia.
– Bravo, sr. Holmes! – gritou o jornalista. O modo como Holmes dizia coisas absurdas que se confirmavam era incrível. – E onde é que o ladrão escondeu as armas?
– Num… num… num parque infantil! Não, num hospital! Nos Jerónimos! – Holmes delirava.
– Foi em casa da avó, sr. Holmes. O ladrão escondeu as armas em casa da sua avozinha.
– Raios, Watson! Mais ópio!
E foram as suas últimas palavras, antes de entrar em coma.»
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