(Jornal "Público", 2008-11-08, Andreia Sanches )
8h15
Toca a campainha que avisa a escola que as aulas vão começar. Clara Correia, de 57 anos, engole o último golo de café no bar da sala de professores da Escola Básica dos 2.º e 3.º ciclos Mário de Sá Carneiro, em Camarate. Depois, agarra no livro de ponto, num rádio-gravador e numa pesada mala com rodinhas onde tem os materiais pedagógicos. Sai atrapalhada com tantas coisas na mão. Ludomina, um "pequeno terror" de 13 anos que está a braços com um processo disciplinar, oferece-se para ajudá-la a empurrar a mala. Atravessam a escola e param à porta da "Madeira" - assim foi baptizado o pavilhão de madeira escura onde funcionam oito salas. Vários professores também se referem a ele como "o campo de concentração". Não há saídas de emergência e para oito turmas de 28 alunos cada só há uma porta de saída para a rua. "O nosso maior pavor é que haja um incêndio." Nos "Açores", outra alcunha para um pavilhão azul que fica mesmo ali ao lado, há janelas que não abrem e estão entaipadas. Não entra luz do dia. Algumas tomadas não funcionam. Não há aquecedor. No Inverno aprende-se de kispo e luvas. Desabafo duma professora: "A motivação destes miúdos já não é grande, aqui então!..."
8h20
Na "Madeira" começa a aula de Inglês. Clara tem à sua frente 28 irrequietos alunos da turma do 5.º D que têm entre os 10 e os 13 anos. É o início de um dia que será longo. "Muitas vezes começo às oito da manhã, acabo depois das oito da noite, são 12 horas." As desgastantes aulas de 90 minutos (lecciona Inglês, mas também Português e Estudo Acompanhado, "três currículos diferentes que é preciso preparar"), são apenas parte do seu trabalho. Clara, coordenadora de um departamento de 21 professores, é professora-avaliadora. Tem de avaliar o desempenho de 11 docentes, colegas seus. Mas há mais. Duas vezes por semana é destacada para tomar conta das crianças que se portam mal e são expulsas e são encaminhadas para uma sala especial; dá aulas de substituição de colegas que faltam; faz trabalho com alunos na biblioteca; dá aulas de reforço a quem não têm o Português como língua materna (há alunos da Índia, Senegal, Ucrânia...); às quartas tem reunião de Conselho Pedagógico e reuniões de departamento. Mas o que mais lhe custa é esta tarefa de ter que aplicar este ano o novo modelo de avaliação do desempenho. Desde logo, diz, porque não lhe deixa tempo para o essencial: dedicar-se como gostaria aos seus exigentes alunos (vários de bairros complicados como a Quinta da Fonte, o Bairro da Torre, o Bairro das Fontainhas...) e preparar materiais "giros" para usar nas aulas.Vários professores da escola assinaram um abaixo-assinado contra o modelo de avaliação do desempenho. "Há uma grande animosidade instalada, o ambiente na escola é tenso", diz. E salta à vista que é. O nervosismo instalou-se.
9h45
Clara acaba a aula de Inglês alguns minutos antes do tempo oficial. Quer conversar com os alunos. Mas tem mesmo que ser uma conversa mais curta do que a que eles gostariam - alguns teimam em não sair da sala para o recreio. "Vá lá meninos! Têm que ir." As colegas com quem tem uma reunião marcada já estão à espera dela. É preciso planificar uma viagem de estudo. "Somos nós que tratamos de tudo, dos seguros, dos autocarros, das autorizações..." Clara decidiu ser professora por vocação. Formou-se em Letras, em Lisboa, e há 14, 15 anos (não se recorda ao certo) foi parar a Camarate. É uma professora vibrante e percebe-se que os miúdos gostam dela (muitos encontram-na no recreio e pedem-lhe beijinhos, mesmo os "pequenos terrores"). Por estes dias, contudo, anda triste. Vê colegas e amigas como Celeste Marreiros, 34 anos e nove meses de serviço, a reformarem-se antes do tempo. Uma das razões é a própria Celeste (a quem caberia avaliar dez professores se não se fosse embora antes) a explicar ao PÚBLICO: "Não tenho medo de falar, já meti os papéis para me ir embora: não quero avaliar nenhum professor porque isto é uma fantochada." O PÚBLICO passa o dia na escola e sucedem-se os que fazem questão de denunciar o modelo. "Se duas alunas engravidarem ao longo do ano e desistirem da escola, já não conseguimos cumprir as metas de redução do abandono escolar e somos penalizados na avaliação porque não conseguimos segurá-las!", indigna-se Ana Martins. Outro professor, Henrique Sequeira, rosto fechado: "Há professores com menos experiência a avaliar outros com mais experiência; pessoas mais novas a avaliar mais velhas; piores professores a avaliar os melhores, porque quem chegou a professor-titular [que é quem avalia] é quem teve mais cargos nos órgãos de escola nos últimos anos, foi esse o critério. As grelhas de avaliação são absurdas, a escola está permanentemente em tensão. Tenho 25 anos de ensino. Já viu o que é um professor com 25 anos (e as minhas colegas que ainda têm mais anos do que eu) ter as suas aulas observadas por professores-avaliadores?"
9h55
Um grupo de alunos começa à pancada no recreio. Dezenas de outros gritam, riem, empurram-se. "Às vezes vão parar ao hospital", diz Clara. Já tem sobrado para os professores. Quem passa não se mete. Nem sempre são só outros alunos que se portam mal. "Ontem veio cá uma mãe e mordeu na filha", dirá mais tarde Raquel Carvalho, presidente do Conselho Executivo (CE). Para já, Clara empurra a sua mala com rodinhas em direcção à sala onde vai ter a reunião. É sobretudo da avaliação dos professores que se acabará por falar. "Vi-me envolvida neste processo, gosto de honrar compromissos, mas está a custar-me mais do que imaginava. Tenho professores que sei que fazem um trabalho muito bom e não vou poder dar-lhes uma classificação de Muito Bom por causa das quotas... como é que eu vou lidar com isso?" As quotas para as notas de Excelente e Muito Bom, impostas pelo Governo, são um dos grandes pontos de discórdia. No agrupamento da Básica Mário de Sá Carneiro há cerca de 200 docentes. "Só oito vão poder ter Excelente. E só 32 vão poder ter Muito Bom. Os parâmetros do Excelente são de tal maneiras exigentes que quase não é possível cumprir. Agora o Muito Bom... posso garantir-lhe que temos muitos mais professores que merecem Muito Bom. E estou arrepiada, porque vai haver muita injustiça. As quotas são uma coisa maquiavélica."
11h30
Se o PÚBLICO não estivesse a acompanhar Clara Correia, a reunião que se seguiria seria com os outros avaliadores. Assim, Clara passa em revista com alguns colegas o trabalho que já foi feito para a avaliação do desempenho. "Começámos por ir fazer uma acção de formação para avaliadores para saber tudo o que era de legislação, ver que documentos era realmente preciso reunir, que metas e objectivos era preciso definir... As acções de formação foram pagas: "70 euros", conta. "Preparámos algumas das fichas de avaliação, o plano que será usado quando assistirmos à aula do avaliado, a acta para fazer após a aula assistida, as actas para a reunião de definição dos objectivos individuais dos avaliados, as orientações para os professores definirem os objectivos individuais... para tudo é preciso uma acta. Éramos um grupo de trabalho e a formação foi melhor do que nada, mas não é de todo suficiente. Dentro daquela grande confusão tentámos fazer fichas [de avaliação] que se adequassem à escola, mas não estou segura". Segura do quê? "Não estou segura que as notas dos alunos devam ter reflexo na avaliação do professor, que se tenha que definir logo no início do ano lectivo metas de sucesso escolar, sem conhecer ainda bem alunos que têm imensas carências. Isto não pode ser feito a régua e esquadro. Temos que ser professores, transferir afectividade a miúdos que passam aqui o dia todo (que são aqui largados à porta cedíssimo, porque os pais começam a trabalhar cedíssimo), há toda uma envolvente social da qual não podemos desligar-nos e que nos tira muita energia."
12h30
Clara e outros colegas trazem de casa um Tupperware com o almoço e comem na sala de professores. Há quem se meta com Clara. Uma colega mais nova empurra-lhe a mala com rodas pela sala. Faz a rábula da professora que tem que dar graxa a quem a vai avaliar. "Olha a avaliadora! E dos avaliados, ninguém fala?" - interroga outra. Parece estar a brincar. Mas também parece estar a sério. "O avaliador está numa situação ambígua, porque também ele é avaliado e concorre para as mesma quotas de Muito Bom e Excelente. Isto está a criar desconforto", dirá mais tarde Clara.
14h15
0 5.º D está a postos para outra aula de 90 minutos com Clara: Português. Ludomina está outra vez à espera da professora e oferece-se para lhe levar um saco cheio de livros de Sophia de Mello Breyner que serão usados na aula. Muitos dos alunos não têm dinheiro para comprar os livros, explica Clara enquanto empurra a mala com rodas até à "Madeira". Os miúdos estão mais barulhentos que nunca. As aulas são intensas. Mas nos últimos meses tem que sobrar energia para outro tipo de actividade igualmente intensa: procurar respostas para as dúvidas que surgem a toda a hora sobre avaliação do desempenho. "Há imensas. Coisas tão simples como esta: há aulas que funcionam com dois professores, como Educação Visual e Tecnológica no 2.º ciclo. Quando for feita a observação das aulas, como é? Um dos professores sai da sala? É que a avaliação é individual. Mas todo o trabalho de preparação da aula é feito a dois", continua Clara. "Há muita desinformação nas escolas", comentará Anabela Delgado, dirigente da Fenprof. "Há acções de formação a decorrer, diz, mas muitos aspectos ficam por esclarecer. Por exemplo: muitos professores acreditam que se faltarem uma vez que seja serão prejudicados na avaliação. Mas, esclarece, basta que justifiquem a falta e compensem a aula que ficou por dar, para, em princípio, não serem prejudicados". Contudo, à conta da falta de informação a tensão vai crescendo.
16h00
Reunião do Conselho Pedagógico. Ponto único na ordem de trabalhos: tomada de posição sobre o abaixo-assinado dos professores do agrupamento de Camarate que pedem a suspensão do processo de avaliação. Estão contra "uma avaliação que conta com avaliadores necessariamente impreparados para a função", lê-se no documento. A reunião acontece na biblioteca, que fica num dos edifícios da escola que nada tem a ver com a "Madeira" e os "Açores". É um edifício em tons pastel, de dois andares, luminoso. "O CE não tem poderes para suspender uma lei", diz Raquel Carvalho antes de entrar. Clara entra atrás dela.
19h30
A reunião termina e Clara já pode ir para casa. Está satisfeita. "Creio que vamos conseguir aligeirar o processo. Decidiu-se no Pedagógico alargar os prazos para os professores entregarem os seus objectivos individuais [um documento onde cada professor se compromete com metas cuja concretização será avaliada no final do ano], o que lhes dará mais tempo para conhecer os seus alunos. E haverá menos papéis a serem exigidos. Correu muito bem". Para Celeste Marreiros a simplificação virá tarde, uma vez que já pediu a aposentação: "As condições de trabalho são péssimas. E o que se pretende é melhorar as estatísticas do sucesso escolar. Este Governo e esta ministra fizeram com que eu perdesse todas as ilusões. Só nos falta ir a casa dos meninos buscá-los para a escola e querem que se cumpra metas como ter 85 por cento de sucesso escolar?" A verdade é que as fichas-modelo do Ministério da Educação não obrigam à definição, por parte das escolas, de metas quantitativas de sucesso, mas muitas, como o agrupamento de Camarate, estão a comprometer-se com números. Raquel Carvalho explica que se procurou quantificar tudo ao máximo "para evitar discrepâncias de avaliador para avaliador". Contudo, a presidente do CE acredita que ainda se vai a tempo de simplificar processos, de desburocratizar e de diminuir a ansiedade instalada esclarecendo aspectos que os professores estão a interpretar mal. "Estão a decorrer acções de formação para os avaliados, algumas dúvidas estão a ser esclarecidas." Por exemplo, a meta dos 85 por cento de sucesso não obriga cada professor a ter em cada turma essa percentagem de aprovações, garante. O que importa, continua, é a melhoria dos resultados face ao ano anterior. "O professor pode ter Bom na mesma".Clara Correia está esperançosa de que muitas dificuldades vão ser ultrapassadas. De qualquer forma, no sábado [hoje] não faltará à manifestação.
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