Com a devida vénia, eis a crónica de João Miguel Tavares publicada no jornal "Público" de 04/05/2023,
«Uma das melhores razões para Marcelo Rebelo de Sousa não dissolver o Parlamento é esta: eu quero saber o que está no computador de Frederico Pinheiro. Como notou Sebastião Bugalho na CNN Portugal, a dissolução do Parlamento teria como consequência indirecta a dissolução da comissão de inquérito à TAP, o que talvez fosse óptimo para António Costa, mas seria péssimo para o país. Queremos ouvir Frederico Pinheiro. Precisamos ouvir Hugo Mendes. E pagamos para ouvir Pedro Nuno Santos. Esses serão, com certeza, momentos mais clarificadores para a democracia portuguesa do que uma nova ida às urnas.
O PS teve maioria absoluta há pouco mais de um ano e, como se viu na terça-feira, o Governo de António Costa parece o Governo de Pedro Santana Lopes, mas António Costa não é Pedro Santana Lopes. Costa mantém o poder e o título de habilidoso-mor do reino, entretendo-se a escrever peças de teatro de grande audiência enquanto tudo se desmorona à sua volta. Devia ser óptima companhia durante o terramoto de 1755. Só não lhe peçam para a seguir fazer de Marquês de Pombal, porque a sua grande vocação é para gerir destruições e não para planear construções. A desfazer — das reversões à desprivatização da TAP —, Costa é óptimo; é a fazer que se aborrece. Já aqui o disse inúmeras vezes: tanto talento político para nada.
Aquilo a que assistimos no psicodrama de 2 de Maio foi a uma versão chunga do episódio do irrevogável — o primeiro-ministro que surpreendentemente diz “não” quando todos estão à espera que diga “sim”. É um tipo de surpresa politicamente eficaz, porque toda a gente aprecia a coragem e a resiliência de quem, sozinho, parece suportar o peso de uma decisão difícil. Mas, no caso de Passos Coelho, a sua coragem era sincera e tinha substância — o Governo não podia cair a meio de um programa de ajustamento. Neste caso, é apenas cálculo político, embrulhado em mais mentiras.
O cálculo político: António Costa está farto de levar calduços de Marcelo sobre uma possível dissolução e decidiu que era o momento certo para fazer finca-pé. As mentiras: António Costa encenou um pedido de demissão com Galamba só para carregar no pathos, como ensinam as tragédias gregas; omitiu que, segundo o próprio Galamba, foi a ministra da Justiça que o aconselhou ilegalmente a envolver o SIS; e não tocou no facto de o ministro das Infra-Estruturas ter mentido deliberadamente quanto à reunião secreta que tinha tido com a CEO da TAP. O que era verdade na terça-feira continuava a ser verdade na quarta-feira: este é um governo de mentirosos e de irresponsáveis, e Galamba tem tantas condições para ser ministro como o Rato Mickey.
O que deve, então, fazer Marcelo? É simples: colocar gelo nos pulsos e deixar-se estar quieto. O tempo corre a seu favor e contra António Costa. É verdade que Marcelo se fartou de abusar das ameaças veladas de dissolução. Mas tem do seu lado o facto de sempre ter insistido que a dissolução não era para agora. E não é. Este é o momento para deixar António Costa grelhar, no Governo e na comissão de inquérito à TAP, e para aguardar pacientemente que a mais profunda natureza do PS se revele aos olhos dos portugueses. A jogada atrevida de hoje será o certificado de óbito político de amanhã.
“Ontem foi ontem, hoje é um novo dia”, disse António Costa nesta quarta-feira aos jornalistas. “Olhe para o céu, está tão bonito.” E estava realmente bonito. São assim as calmarias que antecedem todas as grandes tempestades.»
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