quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

Medicina na Universidade Fernando Pessoa? A sério?

Considero importante e muito pertinente ler, com toda a atenção, este oportuno artigo de opinião da autoria de João Miguel Tavares, publicado hoje no jornal "Público", para que se conheçam os meandros da anunciada pretensão da "Universidade Fernando Pessoa". Com a habitual e merecida vénia, aqui fica,

«A história de como o infatigável Salvato Trigo recebeu o curso de Medicina com que sempre sonhou está ainda toda por contar.»

«A Universidade Fernando Pessoa é a segunda universidade privada portuguesa à qual foi concedido o privilégio de abrir um curso de Medicina. Se quisermos ser picuinhas, até podemos dizer que é a primeira, porque, em bom rigor, a Católica é uma universidade pública não estatal. O ministro da Saúde, Manuel Pizarro, declarou aos jornalistas: “Não há nenhuma razão para que esteja vedada às universidades privadas a abertura de cursos de Medicina.”

Sempre que um socialista demonstra o seu amor à iniciativa privada de forma tão ostensiva (sobretudo quando a antecessora enterrou as melhores PPP da saúde), podemos ter uma de duas reacções: 1) Celebrar – enfim! – a sua conversão às maravilhas do mercado livre. 2) Averiguar o que é a Universidade Fernando Pessoa e a influência que possa ter nos círculos políticos. Após 20 anos a escrever artigos de opinião em jornais, ensinou-me a experiência que a opção 2 é a mais sensata.

A Universidade Fernando Pessoa, nascida em 1994, devia chamar-se Universidade Salvato Trigo, porque a instituição confunde-se com o fundador e o fundador confunde-se com a instituição, até aos dias de hoje. A certa altura, confundiram-se tanto um com o outro que dois milhões de euros da Fundação Fernando Pessoa (há sempre uma fundação pelo meio) foram utilizados em benefício de Salvato e da sua família. O magnífico reitor foi condenado a 13 meses de prisão por desvio de fundos, com pena suspensa, pelo Tribunal da Relação do Porto. Isto em 2021. Em 2022, foi a vez de a própria universidade ser condenada a pagar 362 mil euros ao fisco, após terem sido detectados “vários vícios na contabilidade da instituição”.

Nada que tenha abalado o prestígio de Salvato Trigo. Aliás, o processo teve uma espantosa originalidade, sobre a qual Bárbara Reis escreveu em 2018 o artigo “A cadeira vazia de Salvato Trigo”. Cito: “Em 44 anos de democracia, ninguém se lembra de um crime de ‘colarinho branco’ – o caso do reitor – julgado com ‘exclusão de publicidade’.” Ou seja, o julgamento de Salvato Trigo decorreu à porta fechada para preservar o seu “prestígio”. A defesa alegou que as notícias podiam causar “danos irreparáveis” à universidade e aos seus alunos, e o Tribunal da Relação impediu o acesso do PÚBLICO ao processo-crime em fase de julgamento, atirando pela janela um princípio basilar do Estado de direito.

Por aqui se vê o peso que o senhor reitor tem no Porto. Um peso de que o próprio Manuel Pizarro beneficiou em 2013, quando Salvato Trigo (já em tempos mandatário distrital das candidaturas presidenciais de Mário Soares e Jorge Sampaio) anunciou que abandonava a comissão de honra de Luís Filipe Menezes na corrida à Câmara do Porto para passar a apoiar Pizarro. Houve direito a almoço à frente das câmaras de televisão e tudo.

Os problemas da escolha estão à vista. Das 40 vagas para estudantes de Medicina que vão abrir em 2023, 30 são “destinadas a alunos estrangeiros”. O Hospital de Gaia, que pela sua dimensão era essencial para credibilizar a candidatura, veio dizer que não tem nada que ver com ela. E a Ordem dos Médicos pediu à agência de acreditação que revogue a aprovação do curso. Juntem a isto os métodos que a Universidade Fernando Pessoa usou em França para se tentar instalar na área dos estudos médicos, até ser forçada a encerrar pelos tribunais, e há uma certeza que fica: a história de como o infatigável Salvato Trigo recebeu o curso de Medicina com que sempre sonhou está ainda toda por contar.»

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