sexta-feira, 21 de abril de 2017

Terapias alternativas, sarampo convencional

Com a merecida e devida vénia, aqui se arquiva o artigo de opinião de David Marçal, com o mesmo título, publicado ontem no jornal "Público",

«Tivemos a notícia muito, muito triste da morte da jovem de 17 anos internada com sarampo em Lisboa. Não havia uma morte por sarampo em Portugal há 23 anos. Está longe de ser a primeira vez que uma doença que se julgava eliminada volta para matar por causa dos movimentos antivacinas. Em 2015 surgiu o primeiro caso de difteria em Espanha desde 1987, que resultou na morte de um menino de seis anos. E muitos outros exemplos há, tais como bebés com tosse convulsa, uma doença para a qual os recém-nascidos dependem das vacinas das pessoas que estão à sua volta, já que ainda não podem ser vacinados. A história é sempre mais ou menos igual: a sensação de segurança que as vacinas conferem faz crer que elas não são necessárias.

A Direcção-Geral da Saúde e vários médicos têm alertado (e bem) para a necessidade da vacinação. Felizmente que a recusa das vacinas não tem no nosso país a expressão trágica que se verifica noutros (que também nos pode afectar, por via da importação de focos de contágio). No entanto, a sensibilização para as vacinas deve ser enquadrada também à luz da avalanche legislativa que nos últimos anos tem contribuído em Portugal para credibilizar os terapeutas alternativos, que atrás das portas dos seus consultórios vendem impunemente mentiras acerca das vacinas e “vacinas alternativas”.

O primeiro decreto-lei, assinado em 2003 pelo primeiro-ministro Durão Barroso, enquadra legalmente as terapias alternativas e obriga, na prática, à sua regulamentação. Seguiu-se, com algum atraso e após uma decisão de tribunal, a publicação de um conjunto de portarias delirantes que definem as terapias alternativas como “abordagens holísticas, energéticas e naturais do ser humano”, falam em “desarmonias energéticas”, “redes de meridianos” e outras coisas que não significam nada. No entanto, prevêem que estes terapeutas mágicos sejam credenciados e possam pendurar nas paredes dos seus consultórios respeitáveis cédulas profissionais emitidas pela administração central do sistema de saúde.

Um outro conjunto de portarias alucinogénicas governamentais, de 2014, definiu os conteúdos programáticos para as licenciaturas em terapias alternativas, que contemplam coisas como a auricoloterapia (a ideia de que o pavilhão auricular é uma espécie de boneca vudu em que a cada pontinho corresponde a um órgão ou a uma parte do corpo) e a iridologia (a mesma coisa, mas com olhos).

Toda esta legislação que contribui para dar indevidamente crédito a quem aconselha a não vacinar deveria ser imediatamente revogada. Recorde-se que no último Orçamento do Estado, e com base nesta cangalhada legal, o BE, PSD, CDS-PP e o PAN aprovaram a isenção de IVA para as terapias alternativas, com efeitos retroactivos, o que na prática constitui um incentivo público aos movimentos antivacinas.

O actual enquadramento legal das vacinas pressupõe uma percepção pública dos perigos das doenças infecciosas. Essa percepção está a mudar, paradoxalmente, face ao sucesso das vacinas. Está na altura de pensarmos numa lei de vacinação obrigatória, pelo menos para algumas vacinas, e com penalizações associadas. Há vários países com leis desse tipo. Não estou certo de que a vacinação deva ser obrigatória para frequentar a escola, uma vez que a escolaridade também é obrigatória. Mas certamente que se podem implementar instrumentos de coacção legal sobre os pais que recusam vacinar os filhos. Porque não, não é uma decisão individual. É uma responsabilidade colectiva e dela depende a segurança de todos.»

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