sábado, 15 de outubro de 2016

António Lobo Antunes e a Ordem dos Médicos

O artigo de opinião de João Lobo Antunes, intitulado "A Ordem dos Médicos", publicado na revista "Visão" do passado dia 13. Com a indispensável vénia:

«Há alturas em que me apetecia tornar a ser médico. Mas não posso: demiti-me da Ordem, devolvi a cédula profissional e a medalha de oiro que há anos me deram. Porque razão? Eu tinha quotas em atraso e ameaçaram-me com um processo. Nem me lembrava das quotas em atraso. Lembrou-me uma carta da Ordem. O problema não foi a carta mas apenas os dois pecados mortais que trazia. Em primeiro lugar estava mal escrita, num tom impertinente que pretendia ser irónico e era apenas parvo, e tinha erros de sintaxe. O meu pai contava acerca de um professor da Faculdade de Medicina que disse a um estudante

– Que você tenha chegado ao sexto ano não me espanta. O que me surpreende é como é que fez a quarta classe.

Quando eu acabei o curso os bastonários da Ordem eram pessoas acima da média. Lembro-me, por exemplo, do Professor Miller Guerra, do Professor Machado Macedo, tantos outros. A mesma coisa para as secções Regionais, a mesma coisa para as pessoas que ocupavam outros cargos. A Ordem tinha muito prestígio. Depois essas pessoas invulgares foram desaparecendo e a Ordem, tomada de assalto por mulheres e homens de craveira intelectual e científica em regra medíocre, deixou de contar com o poder e a influência efectiva que durante tantos anos foram seus. Não tem importância alguma e ninguém a ouve. Os sindicatos médicos, que me parecem outro falhanço, nasceram um pouco disto e também do desejo dos partidos políticos tomarem conta, para seu uso, da importância social da Profissão. Morreram lentamente com a evolução natural dos tempos e o resultado foi a irreversível desagregação da classe. Seria muito importante uma Ordem forte, naturalmente impossível com dirigentes fracos. Criaturas não médicas foram ocupando os lugares dos clínicos. Quando comecei o Director do Hospital era um médico e o administrador hospitalar um auxiliar seu, com uma autonomia restrita. Agora são os administradores que detêm a autoridade e os Directores dos hospitais passaram a Directores Clínicos, ou seja meros adjuntos. Os administradores nada sabem de Medicina. Saberão, quando muito, dirigir empresas e os hospitais são tudo menos empresas. Fui director, durante anos, de uma Clínica Psiquiátrica importante, pertencente a uma Ordem Religiosa. Acabei por os mandar à merda porque quem, de facto, dirigia a Instituição era um administrador incompetente que se limitava a obedecer à Irmã Superiora que punha e dispunha, marcava reuniões, distribuía tarefas, exercia uma autoridade ditatorial. Em certa altura propus a contratação de um médico. A dita Irmã respondeu-me

– Que horror, um preto nem pensar

o que revela bem o seu espírito ecuménico. Uma mulher de Deus que diz isto é uma besta e não merece usar um crucifixo ao peito: merece um pontapé no cu. Se não morreu ainda lá deve estar, a exigir aos médicos internamentos mais curtos porque

– A gente precisa de dinheiro

e claro que a qualidade dos cuidados prestados era má. Não tornei a pôr-lhes a vista em cima a não ser, muitos meses mais tarde, em tribunal por causa do exame médico--legal a uma pessoa internada. A Superiora da Casa e o Administrador vieram estender-me a mão. Mandei-os para o outro canto da sala de espera a fim de que os dedos me não saltassem da algibeira

(às vezes saltam, é uma maçada)

E aqueles energúmenos desapareceram-me da frente. Estes racistas que estariam bem no Ku Klux Klan ou trabalhando para alguns fazendeiros que conheci em África, deram à sola que foi uma beleza. Penso que toda essa choldra continua a exercer na Clínica, formando um bando de idiotas sem carácter, que vão à missa, comungam e julgam estar de bem com Deus. O meu pai, que foi médico numa outra Casa da mesma Ordem classificava a dita freira de

– Um estupor

Ordem religiosa que teve ao seu serviço mulheres excepcionais e alguns clínicos excelentes, no tempo em que os médicos ainda detinham alguma autonomia.

E nisto lembrei-me de um cirurgião a falar-me do Serviço de Urgências de certo hospital muito conhecido

– O doente entrou bem mas depois sobreveio-lhe o Banco e morreu.

E de facto, em muitos casos, um hospital é um lugar perigoso. Como se pode alterar isto com a burocracia que, actualmente, rege a saúde dos portugueses? Entre outras coisas com uma Ordem forte, com capacidade de bater o pé, de dialogar, de exigir também. Se nem o Estado Novo ousou incomodar muito o Professor Miller Guerra por causa do célebre Relatório das Carreiras Médicas não seria este Estado de Direito a fazê-lo. Nem com o dr Portas, um espertalhão oportunista, nem com o dr Passos Coelho, um medíocre, nem com o dr António Costa que considero um Primeiro Ministro decente

(já não era sem tempo)

e poderia certamente contar com o apoio do Presidente da República que, apesar das limitações do seu cargo, tem a estima e o respeito da generalidade dos portugueses, e é capaz de intervenções que se lhe afigurem justas. Uma Ordem credível com dirigentes credíveis, porque existem, de certeza, médicos de muito bom nível, e talvez não seja difícil mobilizá-los se a chamada for firme e convincente. E assim talvez se acabassem com as infinitas patetices de uma Ordem que nem gramática sabe. Voltando à frase do Professor da Faculdade de Medicina será que os actuais licenciados terão completado a quarta classe? Qualquer dia ponho a carta aqui na Visão e vocês julgam ao lê-la. Só tenho pena de não ter uma carta de nenhum administrador hospitalar para julgar eu também.»

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