domingo, 2 de outubro de 2016

A elite viu-se ao espelho e não gostou, diz José António Saraiva

Do artigo de opinião de José António Saraiva, intitulado "A elite viu-se ao espelho e não gostou", publicado no jornal "Sol" de ontem, com a devida vénia:

«Não me lembro de um livro em Portugal suscitar tamanho abalo nos meios políticos e jornalísticos. E confesso que nunca pensei que este livro pudesse despertar tanta raiva. Curiosamente, políticos e jornalistas, que em geral estão em campos diferentes, deram as mãos para me lançarem uma fatwa e me exporem ao «opróbio público». Nem os atentados terroristas foram repudiados de forma tão unânime.

Nestas questões, é usual dizer-se: «Não li o livro e portanto não me pronuncio sobre ele». Mas aqui passou-se o contrário. Disse-se: «Não li o livro mas mesmo assim digo mal dele». Pessoas que reconheceram não o ter sequer aberto chamaram-lhe «vómito», «esgoto», «lixo», «nojo», «abjeção», «pestilência», «asco», etc. Tudo palavras simpáticas.

Mas, tanto quanto sei, nenhum dos protagonistas desmentiu o que o livro relata. Portanto, pergunto: a ‘pestilência’ estará no livro ou na realidade que ele desvenda? O que indignou muita gente foram as ‘indiscrições’ do livro ou o facto de este destapar uma realidade que se quereria escondida? Se calhar, como diria Eça, o livrou retirou «o manto diáfano da fantasia» e mostrou «a nudez forte da verdade».

.../...Fizeram-se debates nas televisões para discutir o livro, ou melhor, para insultar o autor, pois os participantes declaravam não ter lido o livro nem o irem ler. Cada crónica que saía na imprensa era mais terrível do que a anterior.

Houve jornalistas que desmarcaram entrevistas ou pré-publicações já combinadas, declarando-me proscrito. Outros telefonaram-me cheios de mesuras, falei-lhes confiadamente e depois construíram a partir dessas conversas textos carregados de ofensas. Uma revista pediu-me uma entrevista, abri-lhe as portas de casa, e acabou a chamar-me «traidor» e autor de um «crime».

Claro que tudo isto provocou uma corrida às livrarias. Nalgumas formavam-se filas para comprar o livro. Noutras, onde estava esgotado, havia longas listas de reservas. Todos os dias começaram a imprimir-se novas edições.

.../... No livro, procurei usar uma linguagem correta, embora crua e despojada, como convém a este tipo de livros. Mas o nível de linguagem dos meus críticos desceu a abismos raramente vistos. A crítica ao livro foi substituída pelo insulto grosseiro ao autor. Com isso, porém, só conseguiram aumentar a visibilidade do livro e torná-lo um best seller. Foi a melhor campanha de publicidade que o livro poderia ter tido. Nem o maior génio do marketing teria imaginado melhor…

Assim, paradoxalmente, os que pretenderam silenciar-me acabaram por me ampliar a voz. Os que gostariam de queimar o livro acabaram por projetá-lo para os tops, multiplicando as edições.

E o escândalo, constrangendo-me, acabou por ser bom porque chamou a atenção para um livro importante. Podem discutir-se três ou quatro coisas, eu próprio aqui e ali tive dúvidas, mas o essencial é a liberdade com que foi escrito e que pode constituir um exemplo.

.../... houve uma coisa que, talvez mais do que qualquer outra, contribuiu para o rejeição violenta que o livro provocou em certos meios: ele acaba por revelar uma elite que não gostou de se ver ao espelho. A elite política e jornalística portuguesa viu-se ao espelho nas páginas do livro e não gostou do que viu.

.../... percebo que Eu e os Políticos seja visto como um fresco da nossa elite pós-25 de Abril.

E o facto de o livro ser sereno e objetivo irritá-la-á ainda mais. Nele não insulto ninguém, não chamo nomes a ninguém, quase me limito a descrever situações que vivi, não as comentando ou fazendo-o com sobriedade. Assim, o ‘mal’ que muita gente viu no livro estará afinal na realidade que ele retrata.

Pelo que poderá dizer-se que, num efeito de boomerang, as críticas mais violentas ao livro acabaram por desabar sobre quem as fez.»

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